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Miguel Mori, o único jogador a ganhar a Libertadores por Racing e Independiente

Em 13 de abril de 2009, ou há exatos dez anos, na sua Baradero natal onde há uma peña racinguista oficial em seu nome, falecia Miguel Ángel Mori, dono do feito único destacado no título dessa matéria. Hora de relembrar La Chancha, que também é o único a acumular dois títulos internacionais por Independiente e Racing: no Rojo, ganhou as Libertadores de 1964 e 1965, as primeiras de algum clube do país; enquanto que na Academia obteve a Libertadores de 1967 e o Mundial no mesmo ano, também o primeiro do futebol argentino, e ainda os únicos troféus blanquicelestes nesses torneios.

Sua cidade de Baradero situa-se na província de Buenos Aires, o que por si só não indica que seus clubes joguem o campeonato argentino – que historicamente foi/é na prática é um campeonato regional da Grande Buenos Aires com convidados de La Plata, Rosario e Santa Fe. Cidades bonaerenses distantes da capital federal são limitadas de modo oficial a ligas locais, como as de Mar del Plata, Bahía Blanca e a própria Baradero. Os primeiros passos de Mori deram-se então no Sportivo Baradero até ser descoberto pelo Independiente em 1960. Até então, sua principal fonte de renda vinha da bicicleta, mas como entregador de pães. Curiosamente, ao chegar em Avellaneda, Mori parou primeiramente no estádio do Racing, achando que era o endereço certo, quando então notou que precisava caminhar mais 400 metros para chegar ao correto. Mais tarde, romantizaria aquele engano como “um sinal do destino”.

Campeão em 1962 pelo Independiente no campeonato sub-18, naquele mesmo ano foi alçado ao time sub-19. A estreia no time adulto ocorreu em 1964. O volante seria um coadjuvante dos mais importantes da primeira conquista argentina na Copa dos Campeões, como a Libertadores ainda era chamada até a edição daquele ano; Mori não foi titular e nem mesmo entrou em campo no último jogo, quando o Rojo bateu por 1-0 o Nacional para levantar o primeiro dos sete títulos do recordista de troféus em La Copa. Ainda assim, o trabalhador da volância que sabia passar bem aos atacantes a bola que recuperava deixou marcas. Usado pela primeira vez no 5-1 sobre o Millonarios na fase de grupos, foi o coringa do treinador Manuel Giúdice para os confrontos nas semifinais contra o Santos, bi continental e bi mundial.

Comemorando pelo Rojo (primeiro em pé após o engravatado) no vestiário do Maracanã após a virada sobre o Santos e pela Academia (é o de perfil, à esquerda): pouquíssimos foram campeões nos dois de Avellaneda e Mori conseguiu

Mesmo com toda a polêmica ressurgida recentemente quanto à arbitragem, mostramos aqui que o próprio Jornal do Brasil descreveu como “medíocre” a atuação santista no Maracanã, registrando a total falta de ressalvas do técnico alvinegro Lula quanto à incrível virada visitante: com o Santos vencendo por 2-0, La Chancha Mori foi posto em campo aos 37 minutos do primeiro tempo para o lugar de David Acevedo e aos 43 efetuou o cruzamento para Mario Rodríguez descontar. Reenergizados, os argentinos arrumaram um empate-relâmpago apenas dois minutos depois, ainda que a virada tardasse até o minuto final do segundo tempo. Se no Maracanã proporcionara uma assistência, em Avellaneda ele não só foi premiado com a titularidade como deixou um gol no triunfo por 2-1, onde a arbitragem perdoou uma cotovelada de Almir Pernambuquinho em Raúl Savoy.

O gol do volante, aos 37 minutos, foi uma retribuição de Rodríguez, que trabalhara quase toda a jogada, livrando-se de dois zagueiros e de Gilmar antes de entregar para Mori completar entre as traves vazias. Houve um pouco de acaso também, pois Mori havia se lesionado aos 30 minutos e inicialmente inverteu posição com o centroavante Luis Suárez para poupar-se. O gol foi o último ato, logo sendo substituído por Acevedo, que retomou a posição para as finais com o Nacional, em agosto. Mori só foi usado no primeiro jogo, no estádio Centenário. Em setembro, não chegou a ser usado no Mundial Interclubes com a Internazionale; ainda não regularmente profissionalizado, porém, pôde participar das Olimpíadas de Tóquio, em setembro – a Albiceleste, apesar de contar com os racinguistas Agustín Cejas e Roberto Perfumo, caiu cedo, derrotada pelos anfitriões por 3-2.

A importância contra o Santos não pareceu renovar-se posteriormente. Na campanha do bicampeonato continental em 1965, Mori só foi usado na terceira finalíssima com o Peñarol, entrando aos 35 minutos (no lugar de Vicenta de la Mata, o filho) quando a partida àquela altura já estava em 3-0 para os argentinos. Ausente da surra por 3-0 em Milão no reencontro com a Internazionale, foi usado desde o início na causa praticamente perdida em Avellaneda. Não houve gols e a Inter novamente ficou com o Mundial. Focado no contexto internacional, o Rojo terminou em 12º no campeonato argentino, onde os reservas vinham sendo mais empregados. O Racing terminou em um 5º lugar ilusório: estava no fundo da tabela quando foi assumido pelo treinador Juan José Pizzuti, que comandara uma grande reação. Já eram quatorze jogos sem perder. As duas diretorias de Avellaneda então acertaram um troca-troca entre seus volantes.

A imagem completa da foto que abre a matéria mostra Mori e Pastoriza, ilustrando o ótimo troca-troca para todos os envolvidos. À direita, em pé pelo outro clube que defendeu profissionalmente no país, o Newell’s

Mori foi ao Racing, que por sua vez cedeu ao vizinho José Omar Pastoriza. O natural de Baradero não escondeu a insatisfação com a mudança na época, mas depois agradeceria. Conseguiria no Blanquiceleste um reconhecimento mais duradouro – e a titularidade, em sólida dupla com Juan Carlos Rulli. La Chancha agora virava colega do outro único a vencer a Libertadores pelos dois rivais: Humberto Maschio. Maschio conseguiria o feito na junção da carreira de jogador com a de treinador, na qual comandaria o rival vencedor da edição de 1973 (saiu ainda antes o Mundial do mesmo ano). Além deles dois, só outro jogador foi campeão internacional por ambos, o volante Hugo Pérez; este ganhou pela dupla a extinta Supercopa, como um 12º jogador no elenco racinguista de 1988 e como titular no plantel rojo de 1994. Se El Perico Pérez passou a conviver com ameaças, tendo sua casa assaltada diversas vezes, a transferência mútua de Mori e Pastoriza não causou nenhum pandemônio. O próprio Maschio tratou de, em 2011, deixar claro como o contexto de sua época era diferente, relembrando os tempos em que treinou o rival:

“O torcedor do Racing me perdoa. Antes era outro espírito, outra coisa. Saímos campeões em 1966 contra o Gimnasia e na rodada seguinte enfrentamos o Independiente. Cada jogador do Rojo nos esperou com uma guirlanda. A torcida deles nos aplaudia. Quando fomos campeões do mundo, fomos de ônibus desde [o aeroporto de] Ezeiza ao estádio do Racing e nas pontes víamos as pessoas com bandeiras de outras equipes. O mesmo quando chegamos ao Cilindro, que estava cheio com cem mil pessoas. Te conto uma anedota a mais dos clássicos: almoçávamos no Racing e íamos caminhando até o estádio deles. E não em grupo, um a um. Ninguém te dizia nada. E terminava o jogo e voltávamos caminhando também. Os torcedores se misturavam, brincavam, mas não acontecia nada. Nessa confeitaria onde estamos hoje, nos anos 60 e 70, se juntavam as torcidas do Racing e do Independiente. E daqui iam a campo: os do Racing por uma ruela e os do Rojo, pela outra. Não acontecia nada”.

Na mesma linha depôs outro ex-Independiente naquele Racing de 1967 (que continha ainda o atacante Norberto Raffo como outro campeão em comum; no seu caso, com o campeonato argentino de 1960 pelo Rojo), um brasileiro: João Cardoso, autor de um do gols na final da Libertadores de 1967, contou em entrevista ao Futebol Portenho que “a transferência para o Racing foi discreta e tranquila, fui vendido normalmente, sem problema nenhum. Quando vieram [o pessoal do Racing] falar comigo, já estavam acertados com o Independiente. Naquela época, até a rivalidade entre os clubes era normal. Quando a imprensa soube, eu já estava contratado pelo Racing”. Mas antes de vencer a Libertadores de 1967, era preciso ficar ao menos como vice do campeonato nacional.

Nas finais de 1967: conduzindo contra o Nacional na Libertadores e encarando John Hughes, do Celtic, na partida em Glasgow

Bem recebido pelos novos colegas, Mori, que só havia marcado um gol tanto em 1964 como em 1965 na liga doméstica, deixou três no torneio argentino de 1966: no 5-0 sobre o Quilmes, no 1-0 sobre o Estudiantes e no 2-1 sobre o Lanús, todos fora de casa – além de um gol em amistoso com o Milan finalizado em 1-1, ainda em junho (em dezembro, foi a vez dos campeões baterem por 3-2 o Bayern Munique no amistoso que inaugurou a nova iluminação noturna do Cilindro). De modo menos estatístico, Mori reforçava a defesa já sólida com Perfumo, Alfio Basile e o goleiro Cejas. A retaguarda racinguista foi a menos vazada, sofrendo 24 gols ao longo de 38 rodadas. O que eram quatorze jogos de invencibilidade ao fim de 1965 emendou-se para um total de 39 ao longo do torneio de 1966, um recorde no profissionalismo. Na liga argentina, só o Boca de Carlos Bianchi, com um jogo a mais, quebrou esse recorde, em 1999. Os comandados de Juan José Pizzuti viravam exatamente El Equipo de José.

Pela frente, uma maratona os aguardava pela Libertadores de 1967, começando com uma fase inicial de grupos com seis times – a dupla argentina Racing e River, dois colombianos (Santa Fe e Independiente Medellín) e dois bolivianos (31 de Octubre e Bolívar). Antes da classificação se assegurar em favor dos dois argentinos, Mori só esteve ausente exatamente na única derrota, o 3-0 para o 31 de Octubre em La Paz. O mesmo adversário, no reencontro em Avellaneda, já tinha o placar devolvido antes dos 15 minutos. Em campo, Mori foi retirado aos 34 antes do escore se consolidar em 6-0, aplicado também no Bolívar. Nesse segundo 6-0 e no 0-0 com o River, Mori não foi usado, retornando para a segunda fase de grupos. Bateu ponto em todos os jogos dela, exceto no último, o 3-1 no quarto encontro com o já eliminado River. Esteve então em todos os minutos das três finais necessárias contra o Nacional.

Em um time cheio de gente supersticiosa, o volante era um dos protagonistas da cábalas: ele sempre precisava vomitar cinco minutos antes dos jogos; Perfumo sempre precisar procura-lo para tomar chá; Mori e e Rulli precisavam abraçar todo domingo perto da bandeira de escanteio a histórica zeladora Tita Mattiussi, virtual mãezona daqueles jogadores; e Basile era obrigado a vestir mesmo nos dias de calor um terno que, no regresso à casa após a conquista, foi queimado no círculo central do Cilindro em uma dança dos jogadores ao redor. Superstições à parte, A força daquele Racing também se demonstrava no campeonato argentino, onde a Academia avançou à decisão do Torneio Metropolitano mesmo precisando concilia-lo com La Copa.

Festa de 20 anos da primeira Libertadores do Independiente, em 1984, reproduzindo a icônica saudação do Rojo: Santoro, Bernao, Guzmán, Acevedo, Santiago, Rodríguez, Mori, Zerrillo, Maldonado, Suárez, Paflik, Rolán, Mura. Ferreiro e De la Mata

Exceto o hábito do chá ter quase rendido um incêndio no hotel em Glasgow, Mori (que provocara chamas no quarto ao tentar acender o mate) só não teve muitas histórias para contar sobre o Mundial, realizado exatamente contra a equipe que batera na final europeia La Grande Inter: o Celtic. O volante só participou do jogo de ida, na Escócia, precisando ausentar-se das partidas seguintes após lesionar-se em choque com o colega Raffo em um treino. Ele ainda seguiu titular por 1968, onde o Racing esteve muito perto de nova final de Libertadores: entrando diretamente nas semifinais, venceu por 2-0 o Estudiantes em casa e mantinha o 0-0 até os vinte minutos finais em La Plata, mas caiu por 3-0. No Torneio Nacional, chegou ao triangular final, favorável ao Vélez. Em 1969, Mori então reforçou brevemente o Newell’s antes de rumar ao Audax Italiano.

Aos 29 anos, a carreira de quem aos 24 já era tricampeão da Libertadores se encerrava após rompimento dos ligamentos do joelho. Mori só voltou ao futebol quando requisitado para dirigir o Sportivo Baradero. Sua última aparição pública deu-se nos 40 anos da conquista mundial, em 2007, antes de seu coração fazê-lo em 13 de abril de 2009 reencontrar Pastoriza, em outro mundo desde 2004 – dois anos após El Pato ter rechaçado sentir alguma inveja na época em ver os ex-colegas repentinamente campeões de tudo: “porque ia ter bronca se aí tinha um montão de amigos? Além disso, depois ganhamos nós com o Rojo. Eu também acreditava no que fazia”. De fato, aquele troca-troca fizeram bem a todos os lados: Pastoriza, mesmo oportunamente voltando à Academia como treinador em 1981, encarnaria a própria alma do Independiente, defendendo-o entre as quatro linhas até o início do tetra seguido do clube na Libertadores e vencendo-a como técnico em 1984, em uma das diversas passagens como comandante dos Diablos.

Sobre a trajetória de Pastoriza, havíamos contado aqui. E mostramos aqui que no primeiro dérbi após o Mundial, os blanquicelestes foram plaudidos em homenagem pomposa do rival, logo antes de clássico que valeria título argentino para o lado vermelho. Espírito retribuído quando foi a vez do Rojo levantar pela primeira vez o torneio, em 1973, como lembrou seu capitão Ricardo Pavoni ano passado ao La Nación: “quando íamos treinar, passávamos pela casa da Tita [Mattiusi], no Racing, e ficávamos tomando mate com eles. Ou os rapazes do Racing vinham ao nosso campo tomar mate conosco. Nos matávamos a patadas em uma partida mas durante a semana nos juntávamos, havia amizade. Quando o Racing foi campeão do mundo os recebemos com uma guirlanda de flores no campo de jogo. E quando fomos nós os campeões, em 1973, demos a volta olímpica no estádio do Racing levantando o troféu e as pessoas nos aplaudiam. A torcida do Racing nos aplaudia!”.

Outros tempos…

Mori e Maschio, únicos a vencerem a Libertadores pela dupla de Avellaneda, celebram a marca de 32 jogos invictos (seriam 39) em 1966. À direita, lado a lado na festa dos 40 anos do Mundial, em 2007: Rambert, Parenti, Mori, Maschio, Spilinga, o brasileiro Cardoso e o técnico Pizzuti; Martinoli, Rulli, Rodolfo Vicente, Oscar Martín e Cárdenas

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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