AcessoEspeciais

Palermo, o bairro que mais times teve e que afugentou todos

Palermo1
Lavezzi há dez anos, em 2004, no Estudiantes de Buenos Aires. Pablo Mouche, hoje no Palmeiras, também foi formado no clube, hoje habituado à 3ª divisão mas poderoso há cem anos

Palermo é o maior bairro de Buenos Aires, tão grande que nos guias de turismo é comum ser subdividido, como o Palermo Soho, Palermo Hollywood, Palermo Viejo… Em uma cidade caracterizada por cada bairro costumar ter seu próprio time ou mais, natural que Palermo tivesse vários. Lá o futebol nasceu no país, aliás. Até o River passou por lá rapidamente. Outro clube dali, o Club Atlético Palermo, completou na última segunda-feira o seu centenário e revelou Higuaín. Mas hoje o bairro não tem simplesmente nenhum representante no futebol adulto: seus clubes ou lhe deixaram (fino, tem terrenos dos mais caros da capital), ou se extinguiram, ou desativaram o departamento, caso do Atlético.

O Buenos Aires Football Club, fundado em 1867, foi quem introduziu o futebol na Argentina: leia aqui. Seu campo ficava perto de onde hoje está o Planetário Galileo Galilei. Mas antes mesmo do primeiro campeonato argentino (o mais antigo do mundo fora do Reino Unido), em 1891, o clube, embora tenha participado, já se focava no rúgbi. Um incêndio nos anos 50 destruiu sua sede em Palermo e hoje ele, rebatizado Buenos Aires Cricket & Rugby Club, está na cidade de San Fernando. Em 1897 e em 1898, competiu na elite o Palermo Athletic Club, sem ligação com o Atlético. Se desafiliou já em 1898 da AFA (na verdade, de sua antecessora, a AAFL – Argentine Association Football League). Foi quinto em 1897 e sexto em 1898, em um certame que na época só tinha sete clubes.

Também em 1898, fundou-se o Club Atlético Estudiantes, que revelou Lavezzi. Está em festa agora: eliminou ontem o favorito Vélez nos 16 avos da Copa Argentina, torneio em que foi semifinalista ano passado. Foi o primeiro Estudiantes do país. O mais famoso deles, fundado em 1906, pôs “sobrenome” no seu nome formal exatamente para se diferenciar, chamando-se oficialmente Club Estudiantes de La Plata. Na época, fazia sentido, até porque o Estudiantes BA era forte: tinha jogadores na seleção e aplicou em 1909 aquela que ainda é a maior goleada já vista no país, um 18-0 sobre o grande clube da década anterior, o Lomas, campeão naqueles torneios que contaram com o Palermo Athletic.

Com 12 gols naquele jogo, Maximiliano Susán tem o recorde de maior artilheiro em uma partida na Argentina. Se tornaria um raro latino no grande clube da época, o Alumni (leia aqui). Ele e o irmão José Susán (quem sugeriu a criação da Copa América) jogaram na seleção, assim como Oscar Ivanissevich, que se inseriu na política argentina a ponto de ser embaixador nos EUA entre 1946-48. Esteve por trás de diversos atos para a legitimação popular do governo de Perón, sendo ministro da Educação de 1948-50 e, já no governo da viúva do general, Isabelita, de 1974-75. Ivanissevich foi co-autor da “Marcha Peronista” e também esteve por trás do ingresso de foragidos nazistas ao país.

Palermo2
O Estudiantes foi o primeiro clube argentino a vir ao Brasil. O jornal mostra fotos do recordista Susán. À direita, festa nos vestiários ontem pela classificação sobre o Vélez na Copa Argentina. O clube só caiu nas semis ano passado, contra o San Lorenzo

O Estudiantes BA também foi um dos pioneiros em excursões por interior e exterior. Em 1907, jogou contra um combinado da recém-fundada liga cordobesa, jogo que o público pediu 30 minutos extras de tanta empolgação. No mesmo ano, foi o primeiro oponente de capital federal recebido em Rosário pelo Newell’s Old Boys, que perdeu por 3-2. Mas a mais importante veio em 1910, quando se tornou o primeiro clube argentino a vir para o Brasil. Jogou quatro vezes, marcou 23 gols e sofreu 3. Em 1915, o Estudiantes hospedou por um ano o River, então ainda um humilde clube do bairro sulista de La Boca e que só se mudaria de vez para a fina zona norte portenha em 1923.

Se amizades entre clubes é algo comum hoje, vide associações entre diversas torcidas organizadas pelo Brasil, uma das primeiras iniciou-se em 1903, entre o Estudiantes e o Montevideo Wanderers, que acabou adotando o mesmo uniforme alvinegro do time argentino. Chegou a definir-se até que quem fosse sócio de um seria considerado da mesma forma no outro. Se enfrentaram no aniversário de 110 anos do Estudiantes, em 2008. O alvinegro argentino foi vice nacional em 1907 e em 1914 mas decaiu com o profissionalismo, instalado de vez em 1931. Quando o clube enfim se profissionalizou, teve que começar na segundona. Só conseguiu estar na elite de novo em 1978 e logo caiu.

Ainda no amadorismo, o Estudiantes BA inaugurou sede social em outro bairro, Villa Devoto. Em 1963, ergueu seu estádio atual, na cidade de Caseros, na municipalidade de Tres de Febrero, vizinha a Villa Devoto. Daí que hoje o Estudiantes de Buenos Aires também é conhecido como Estudiantes de Caseros. A mudança originou o Clásico de Tres de Febrero, travado com o vizinho Almagro (que também tem uma amizade ilustre, com o Grêmio, pelo uniforme parecido: veja aqui). Os alvinegros gostam de lembrar de um 5-1 em 1996 que os promoveu à segundona. O mais célebre vira-casaca dessa rivalidade talvez tenha sido o pai de David Trezeguet, que também foi jogador.

Curiosamente, o ano de 1914 também teve o Estudiantes de La Plata como vice argentino, pois cada xará disputava uma liga diferente; só a do alvinegro era reconhecida pela FIFA mas hoje ambas são consideradas pela AFA e historiadores. Essas duas ligas passaram a existir em 1912, por conta de outro clube de Palermo: o Club de Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, mais conhecido pela sigla GEBA. Ele entendia incabível ter de cobrar ingressos dos seus sócios quando jogava em casa. Daí se desafiliou da então AAF (Asociación Argentina de Football, sucessora da AAFL) para fundar a FAF (Federación Argentina de Football) junto com outros ex-clubes da elite e da segundona da AAF.

Palermo3
Estádio do GEBA, que sediou o primeiro Brasil x Argentina e a primeira Copa América. Ao centro, o Porteño nos anos 20 e jogador atual de rúgbi do clube, hoje focado na bola oval

Foi por esse fator que Independiente e Boca passaram à elite: o Rojo foi recrutado pela FAF a partir da segundona da AAF, que em 1913 reagiu e inchou sua elite, incluindo Boca e outros. As duas ligas se unificariam em 1915 e ambos foram mantidos na primeira divisão. Em 1912, o Independiente quase venceu a FAF, mas a taça ficou com outro time de Palermo, o Club Atlético Porteño, que foi campeão também em 1914. Carlos Izaguirre, autor do primeiro gol da história de um Brasil x Argentina, era do Porteño e fez também outro gol no mesmo jogo, um 3-0 que completará cem anos em setembro. Já dedicamos um especial ao clube aqui, e sobre sua tumultuada decisão com o Independiente aqui.

O Porteño já vinha mal antes do profissionalismo (foi rebaixado em 1929) e logo desativou seu futebol com a nova era. O clube, que passou a focar-se no rúgbi, ainda existe, mas sediado na cidade de San Vicente, no limite sudoeste da Grande Buenos Aires. Porteño e GEBA tiveram outros vizinhos consigo naquela cisão de 1912, o Club Atlético Kimberley e a Sociedad Sportiva Argentina, que não foram tão proeminentes. A Sociedad desativou o futebol um ano depois e passou a se dedicar ao hipismo, popular no bairro – o Campo Argentino de Polo fica nas antigas instalações da Sociedad e é em Palermo que o turfe ocorre cada segunda no Hipódromo Argentino. O Porteño teve esse nome por um cavalo vencedor de lá, na atmosfera que rendeu também o mais famoso tango, “Por Una Cabeza”, de Carlos Gardel.

O Kimberley, por sua vez, foi rebaixado já na reunificação das ligas, em 1915, e desapareceu. O Kimberley mais famoso do futebol argentino é o de Mar del Plata, célebre internacionalmente por ter sua camisa alviverde usada pela França na Copa de 1978, folclore que retratamos aqui.

Voltando ao GEBA: ele foi fundado ainda em 1880, mas só passara a praticar futebol já no século XX. Ele também foi vice argentino, na sua liga, em 1913, exatamente para o Estudiantes de La Plata, campeão argentino ali pela primeira vez. Na época, uma prestigiada competição era a Copa Competencia, travada entre clubes rosarinos e da Grande Buenos Aires para definir moralmente um campeão nacional. O Porteño inclusive a venceu, em 1915, sobre o Racing, e 1918, sobre o River. O GEBA foi vice em 1910, exatamente para o Estudiantes BA, em uma curiosa final entre um Gimnasia e um Estudiantes que não são os arquirrivais de La Plata.

Palermo4
Evaristo e Zumelzú (em pé) no Sportivo: eles foram vices nas Olimpíadas 1928 e na Copa 1930. Sede do Atlético, cuja origem britânica é mostrada nas cores. Higuaín no infantil do clube e retornando para dar aulas nele

Apesar da falta de troféus, o GEBA foi fundamental no futebol mundial: no seu estádio que ocorreu aquele primeiro Brasil x Argentina. Aquiles Molfino, atleta do clube, fez o outro gol daqueles 3-0 dos hermanos. O campo sediou também a primeira Copa América, em 1916. Um ano depois, em 1917, porém, o time foi rebaixado e o GEBA decidiu desativar seu futebol. Como o Buenos Aires FC e o Porteño, é outro cujo principal esporte bretão atual é o rúgbi; seu estádio foi por muitos anos a casa dos Pumas, a seleção argentina, cujo uniforme foi sugerido pelo clube. Ele segue no bairro de Palermo e continua uma das maiores tradicionais instituições poliesportivas do país. Falamos mais dele aqui.

Enquanto todos esses clubes emergiam, o bairro ganhava novos. Em 1908, nascia o Club Sportivo Palermo. E em 21 de julho de 1914, o Atlético. As duas equipes que levam o bairro no nome chegaram a se fundir brevemente em 1933-34, após trajetórias díspares. Eles apareceram na elite juntos por sinal, ambos em 1920. O Atlético foi logo rebaixado, voltando em 1922 como campeão da segundona. Seu melhor desempenho foi um 5º lugar em 1926 na liga que tinha Boca e Huracán – uma nova cisão de ligas ocorrera em 1919 e seria resolvida em 1927. Apesar da 5ª colocação entre dezoito clubes, o Atlético foi removido da liga reunificada de 1927 enquanto o 18º de 1926, o Porteño, foi admitido.

Já o Sportivo vinha melhor. Ele, que curiosamente chegou a jogar em Caseros também e a ter uma rivalidade com o Argentinos Jrs, foi vice em 1922 e naquela reunificação das ligas, em 1927, ficou em 8º em um certame com 34 clubes. Revelou Juan Evaristo e Adolfo Zumelzú, vices pela Argentina nas Olimpíadas de 1928 (que tiveram ainda Luis Wuihmüller, também do clube, e Ludovico Bidoglio, revelado nele) e na Copa de 1930. Mas, como outros clube do bairro, ficou de fora do profissionalismo e isso lhe condenou às divisões inferiores. Não voltou a ser o mesmo e enfim se desafiliou da AFA há trinta anos, em 1984, logo se extinguindo de vez – até hoje é o último a ter pedido a desafiliação.

O Atlético, por sua vez, está ameaçado de extinção. Mas por hora segue no bairro e seu futebol remanesceu, mas só no infantil, onde surgiu La Pipita Higuaín. Já o departamento de basquete, por exemplo, revelou Ricardo González, capitão da seleção argentina que venceu a primeira Copa do Mundo, da bola laranja, em 1950 (falamos aqui). A última vez que o bairro foi ligado ao futebol de alto nível foi em publicidade da Gillette em 2010, com um gol entre as Torres Mirabilia, os dois edifícios mais altos da capital. Por razões óbvias, o garoto-propaganda foi Martín Palermo, que, como mostram vídeos de making off (ele realmente acertou, na quarta tentativa), teve que enfrentar ventania e seu sofrimento por vertigens…

httpv://www.youtube.com/watch?v=RRdKzovUct4

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

One thought on “Palermo, o bairro que mais times teve e que afugentou todos

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

2 + seis =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.