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Primeiro time argentino a visitar o Brasil festeja 120 anos: o Estudiantes… de Buenos Aires

O nome completo do time de coração de Verón é “Club Estudiantes de La Plata”. Não foi preciosismo acrescentar o “de La Plata”. Era um modo de diferencia-lo do Club Atlético Estudiantes, o original, sem “sobrenome” e surgido antes em Buenos Aires, por mais que sua criação tenha ocorrido na realidade anos após aquele 15 de agosto de 1898 que lhe consta como data oficial da fundação. Embora sumido da elite desde 1977, trata-se de um clube seminal no futebol argentino: foi a primeira equipe competitiva formada por “nativos”. E o primeiro clube argentino a visitar o Brasil! Hora de relembrar o rico passado do time que revelou Lavezzi, e cujos inícios estão atrelados ao do Boca.

O Argentino de Quilmes, fundado em 1899, orgulha-se em ser o primeiro time “nativo” fundado na Argentina. De fato, naqueles tempos o football era um esporte elitista e fechado, quase que exclusivo da comunidade britânica, que teve seu dedo na origem do primeiro Estudiantes. Que, à frente da equipe quilemenha, foi a primeira formada primordialmente por hispânicos a competir na elite argentina.

As origens do Estudiantes de fato remontam à condição estudantil dos fundadores, alunos da Escuela Nacional de Comercio e do Colegio Nacional Sur. Juan Fitz Simon, filho do diretor da Escuela e que já jogava no clube Barracas Central, juntou-se aos colegas Tristán González e Raúl Molina para formar a semente do clube, herdeiro de equipes oriundas dessas duas instituições, que já tinham sido criadas nos idos de 1897; já do Colegio vieram, dentre outros, os irmãos José e Maximiliano Susán. Santiago Fitz Simon, o tal diretor da Escuela, foi o primeiro presidente.

Em 1900, o clube da Escuela Nacional de Comercio se tornou o primeiro time hispânico no campeonato argentino, competindo na terceira divisão, criada naquele ano, admitindo apenas times colegiais com jogadores de até 17 anos. Fitz Simon aproveitava-se de sua ligação com o Barracas e de lá trazia José Buruca Laforia para jogar amistosos pelos colegiais, que tiveram seu primeiro campo no terreno da empresa Madero Rangers, no dique 2 de Puerto Madero. Então um meia-esquerda, Laforia foi convencido por Fitz Simon a virar goleiro. Mudança histórica: no primeiro jogo da história da seleção argentina, em 1902, o goleiro foi Laforia.

Ante a escassez de recursos e a falta de um clube social, teriam sido a primeira equipe a cobrar ingressos para a plateia. Em 1900, já haviam conseguido um terreno na Avenida Alvear. Em 1901, já sob o nome de Estudiantes, adentraram na segunda divisão em 1901; eram tempos sem acesso e rebaixamento: cada time poderia inscrever na divisão que mais lhe fosse conveniente.

E eram tempos em que as reuniões da Argentine Association Football League eram conversadas em inglês. Partiu do Estudiantes a proposta inicial de que o idioma local fosse adotado, bem como se nacionalizasse o nome do órgão, ainda que ambas as ideias fossem a princípio rechaçadas. A fama não ajudava muito: os primeiros registros de pugilato no futebol argentino são atribuídos ao Estudiantes naqueles inícios, na segunda divisão. Embora deva-se registrar também que os jogadores punidos chamavam-se Martín O’Flaherty e Paddy Mac Carthy.

A primeira grande temporada foi a de 1903: o Estudiantes, que inscreveu equipes na segunda e terceira divisões, venceu esta. E no nível acima, foi duas vezes vice: no campeonato da segundona para o Barracas Central (em roteiro incomum: final em 0-0 no tempo regulamentar e em 5-2 na prorrogação, com o segundo gol do Barracas desanimando os colegiais) e na Copa Bullrich (a Copa dos times daquela divisão) para o San Martín, vencedor por 1-0 sobre a escalação estudantil J. Mac Lean, Alejandro Harris e Paddy Mac Carthy; R. Hardie, A. Garré e Colin Campbell; José Susán, E. O’Farrell, J.C. Almandos, Tristán González e C. Arcuri.

Também foi no ano de 1903 que uma acolhida fraternal oferecida pelo Estudiantes ao recém-fundado Montevideo Wanderers criou a mais longa amizade do futebol sul-americano, fazendo o time uruguaio adotar o mesmo uniforme alvinegro dos argentinos (a irmandade seria ressaltada em julho de 2018, quando oficializou-se que o sócio de um terá poderes de sócio no outro; incrivelmente, a data de fundação do Wanderers é em 14 de agosto). Em 1904, por sua vez, o Estudiantes enfim inscreveu-se na elite argentina.

Do penúltimo lugar em 1904 saltou para terceiro em 1905, a quatro pontos do campeão Alumni, o todo-poderoso dos anos 1900 (e onde agora jogava Laforia). Foi apenas nesse ano que surgiu o Estudiantes de La Plata. Em um empréstimo de mão dupla, com o tempo a equipe de Buenos Aires se apelidaria com a alcunha dos platenses: Pincha.

Em 1906, os alvinegros ficaram em segundo em um dos dois grupos do campeonato – apenas os líderes avançaram para decidi-lo. Mas a grande mostra de poderio veio com a derrota honrosa de 3-2 para a seleção de ingleses da África do Sul, forte e cuja derrota de 1-0 para aquele Alumni significou a primeira vitória do futebol argentino sobre uma equipe britânica e de fora das Américas. Os dois clubes também decidiram a Copa Argentina da época, prevalecendo a experiência do Alumni por 3-1.

Em 1907, veio o vice-campeonato na liga, atrás do onipotente Alumni e a primeira visita de um clube argentino ao futebol cordobês, feita pelo Estudiantes, com triunfo dos portenhos sobre o combinado local em prorrogação exigida pela plateia após empate em 1-1. No mesmo ano, venceu por 3-2 o Newell’s, na primeira vez que os rubro-negros receberam um clube da capital federal. Um quinto lugar em 1908 foi seguido por um quarto em 1909, ano marcado pela maior goleada do futebol argentino: o 18-0 aplicado pelo Estudiantes no Lomas Athletic, o outrora poderoso multicampeão da década anterior.

Relato da final internacional com o Peñarol em 1910 e Maximiliano Susán pela seleção em 1908

Essa goleada, que rendeu ainda o recorde individual de gols em uma só partida (os doze de Maximiliano Susán), se deu pela Copa Competencia, na qual os alvinegros viriam a ser campeões em 1910, com direito a um 4-3 sobre o Newell’s nas semifinais. É seu maior título no futebol de primeiro nível, rendendo ainda um tira-teima com o Peñarol pelo troféu Copa Honor, jamais encerrado; uma chuva torrencial impediu o fim dos minutos regulamentares, empatados em 2-2, e nunca houve definição para um desempate.

Também foi em 1910 que o Estudiantes tornou-se o primeiro time argentino a visitar o Brasil, em quatro partidas no Rio Grande do Sul no mês de setembro: 4-0 sobre o Rio Grande, 7-3 sobre o combinado porto-alegrense 7-0 sobre o Pelotas e 5-0 sobre o Rio Grande. Resultados que vieram mesmo sob o desfalque da estrela Maximiliano Susán. Seu irmão José acabou como mestre de cerimônias nas diversas recepções de gala e carreatas com que os argentinos foram recebidos: proferiu ao menos 63 discursos diferentes. Na liga, a equipe ficou em terceiro.

Em 1911, Susán foi admitido no “britânico” Alumni, campeão enquanto os alvinegros ficavam em penúltimo na liga, mas como vice na Copa Competencia. Em 1914, o último grande campeonato alvinegro: o vice para o Racing, a dois pontos da Academia heptacampeã seguida entre 1913-1919. O clube, que em 1915 contava com trezentos sócios e duzentas sócias, não renovou a boa geração inicial e sofreu para chegar ao décimo lugar nos anos seguintes. A lanterna virou algo comum nos anos 20, sob o benefício de não existir rebaixamento.

A decadência ensejou uma fusão em 1928 com o Sportivo Devoto, do bairro de Villa Devoto, onde o Pincha, outrora um clube do fino bairro de Palermo, enraizou a sede social. A mudança não impediu que o clube fosse pouco atrativo para a liga profissional nascida em 1931, terminando de estagnar os alvinegros – a partir dali relegados às divisões de acesso, com exceção da temporada 1978. Chegaram a bater na quarta divisão ao fim dos anos 50 e na nova realidade veio o estádio atual na cidade de Caseros (vizinha a Villa Devoto), erguido em 1963. Outrora rival do Alumni, o Estudiantes de Buenos Aires virou também o Estudiantes de Caseros, desenvolvendo rivalidade com o Almagro, cujo estádio situa-se na vizinhança próxima de Tres de Febrero.

Nos 120 anos de fundação oficial, escolhemos os 12 nomes abaixo para representar em especial a fase dourada do primeiro Estudiantes, com um personagem icônico do futebol argentino, os nove pinchas que defenderam oficialmente a seleção argentina, o treinador mais icônico e a grande revelação dos tempos fracos:

Paddy Mac Carthy: imigrante irlandês como o primeiro presidente Santiago Fitz Simon, foi empregado por ele como professor de inglês na Escuela Nacional de Comercio. Integrou os primeiros elencos do Estudiantes, como zagueiro. Mac Carthy foi uma ponte entre um football então restrito à elitista e fechada comunidade britânica e os “nativos”. Na Escuela, incutiu a paixão pelo esporte nos alunos Esteban Baglietto, Alfredo Scarpatti e Santiago Sana, três dos cinco fundadores do Boca. Em 1913, foi Mac Carthy o árbitro do primeiro Boca x River da elite argentina.

Fim dos tempos áureos, em meados dos anos 10: um bandeirinha, Enrique Winne, José Susán, José de la Barrera, Oscar Ivanissevich, Héctor Bergalli; J. Krieger, Martín Caminal, Max Susán, Arturo Maiztegui, Alberto Ochandío e Rolando Lennie

Tristán J. González: meia-esquerda dos primórdios do time e primeiro jogador pincha na seleção, naquele ano de 1906 em que marcou um dos gols do Estudiantes sobre a seleção sul-africana. Foi de González a primeira iniciativa de que o castelhano fosse adotado pelo órgão diretivo do futebol argentino. Jogou uma só vez pela Argentina, estando no grupo restrito dos jogadores que marcaram gol nessa condição; no seu caso, em vitória por 2-0 sobre o Uruguai em Montevidéu. Esteve também entre os fundadores do Independiente de Campana, sua cidade natal. Exerceu a medicina após o futebol, especializando-se na ginecologia.

Colin Campbell: como González, também só jogou uma vez pela Argentina, em tempos em que as partidas costumavam ocorrer uma vez ao ano. Foi em 1907, em 2-1 sobre os uruguaios. Há quem confunda-o com um Colin Campbell que defendeu a mesma época a seleção do Chile, mas foram pessoas diferentes e não um bi-nacional – o jogador do Estudiantes jamais esteve neste outro país.

José Susán: ponta-esquerda que defendeu a Argentina oficialmente em duas partidas entre 1907 e 1908, embora também tenha jogado pela Albiceleste em 1912, em jogos não-oficiais contra clubes e combinados brasileiros. Era o irmão mais velho de Maximiliano. Curiosamente, também foi árbitro de jogos da Argentina (só ele, William Leslie e Juan José Rithner vivenciaram o mesmo), exatamente em uma tarde de herói do irmão. Como outros membros daquele grande Estudiantes dos anos 1900, ingressou na política, sendo deputado federal pela província de Buenos Aires. Era maçom e também trabalhou no diário La Argentina.

Maximiliano Susán: o maior nome da história do clube. À parte o recorde de doze gols sobre o Lomas em 1909, foi um jogador à frente do seu tempo: extremamente versátil, de boa técnica, grande vigor físico e chute potente. Atuou no Estudiantes como defensor. Só pela seleção, em trajetória que durou de 1908 a 1913, foi seis vezes volante central, seis vezes meia-direita, quatro vezes ponta-direita, outras quatro centroavante e duas vezes ponta-esquerda. É um dos maiores artilheiros do clássico do Rio da Prata, com seis gols sobre o Uruguai, contra quem jogou quatorze vezes seguidas. Sua tarde de glória foi em 1913, quando marcou quatro vezes sobre a Celeste, um recorde.

“Max” Susán também esteve no primeiro duelo da seleção argentina contra um combinado brasileiro, em 1908 (vitória por 3-2, como volante), e nos jogos de 1912 festivos aos 90 anos da independência; mesmo volante, fez os dois primeiros gols do 6-3 sobre Friedenreich e colegas no Velódromo paulistano no dia 8, sendo depois centroavante no 4-0 nas Laranjeiras no dia 12 (na partida que originou a anedota em que o presidente argentino Julio Roca pediu que os hermanos desacelerassem para não atrapalhar a comemoração da semana da independência brasileira). Susán também defendeu o Alumni, em 1911, e em 1915 deixou o futebol para se dedicar à profissão de veterinário. Simbolicamente, o clube não foi mais o mesmo.

Enrique Rojo: goleiro que atuou uma vez pela Argentina, na vitória por 3-1 sobre o Chile que abriu o torneio que em 1910 celebrou o centenário da Revolução de Maio, movimento que desencadeou a independência da América Espanhola.

O técnico Trigilli em 1995 e Lavezzi despontando em 2004

Oscar Ivanissevich: vigoroso beque direito de origem croata que também jogou só uma vez pela Argentina, já em 1916 (1-0 no Chile). Foi ainda mais importante em outras áreas: virou um cirurgião reconhecido também academicamente e vinculou-se à política: foi embaixador argentino nos Estados Unidos entre 1946 e 1948, ministro da Educação de Juan Perón entre 1948 e 1950 (quando foi um dos autores dos versos da Marcha Peronista, além de um dos principais organizadores dos comícios que afirmaram a legitimação popular de Perón) e de sua viúva Isabelita Perón já entre 1974 e 1975. Era da faceta direitista do peronismo, perseguindo setores progressista e sendo próximo de gente atrelada ao esquadrão de morte Triple A. Também o vincularam à ajuda a criminosos de guerra nazistas que ingressaram no país após a Segunda Guerra.

M. Madero: volante que jogou só uma vez, em 1-1 com o Chile pouco após a Copa América de 1917.

Alberto Enrique Ochandío: centroavante e meia-esquerda que jogou cinco vezes pela Argentina em 1919, marcando igual número de gols, todos sobre o Paraguai. Ingressou na política como outros, sendo deputado federal por Buenos Aires. Sua família possuía propriedades no interior, próximo a Necoechea, em influência que fez um povoado da região chamar-se Estación Ochandío.

Juan van Kamenade: beque esquerdo que provavelmente se chamava Jan, Johan ou Johannes, pois na verdade era holandês. Jogou oficialmente uma vez pela Argentina, já em 1923 (derrota de 3-2 para o Uruguai), além de outros não-oficiais em tempos de cisma entre as federações que regiam o esporte, com sua condição de não-nativo inclusive gerando polêmica na convocação. Um dos jogos não-oficiais, naquele mesmo ano, deu-se no empate em 1-1 com o Third Lanark, clube escocês em excursão pelas Américas. Além de Van Kamenade, defenderam o país em jogos não-oficiais os pontas-direitas Rolando Lennie (1908 e 1912, ambos em diversos jogos pelo Brasil) e Domingo Borsalino (1910, contra o Montevideo Wanderers), o goleiro Héctor Muschietti (1928, em 3-0 sobre o Celta de Vigo) e o volante Horacio Méndez (em diversos jogos em 1934 contra clubes e combinados do interior).

Ricardo Trigilli: talvez o maior nome do profissionalismo do Pincha. Mais associado com o Argentinos Jrs como jogador e depois treinador, foi à beira do gramado que imortalizou-se em Caseros e Devoto. Em 1977, treinou um elenco sem estrelas capaz de colocar pela primeira e única vez o clube na elite argentina, conseguindo o que faltara ao time de 1974, por exemplo (que tinha Luis Landaburu, goleiro titular na final da Libertadores de 1976 pelo River; Jorge Trezeguet, pai de David e que iria ao Independiente multicampeão da Libertadores não fosse um doping; e Roberto Díaz, que viraria o maior artilheiro do Racing nos últimos 40 anos). O clube logo caiu e em 1994 triscou uma queda à quarta divisão. Trigilli, que havia passado pelo rival Almagro, voltou e dezenove anos depois trovejou algo parecido: Estudiantes subindo, para a segundona. Garantindo a vaga com um 5-1 em pleno clássico com o Almagro.

Ezequiel Lavezzi: prospectado da liga rosarina no nanico Coronel Aguirre, havia decidido por deixar o futebol após não conseguir ser testado no italiano Pescara e não ser aprovado no Boca. Mas conseguiu oportunidade no time B do Estudiantes e ainda com 17 anos já era aproveitado no principal, na terceira divisão de 2003-04. O clube foi o melhor dentre os não-classificados aos mata-matas, faltando-lhe três pontos para vencer o segundo turno, quando se viu o melhor Lavezzi alvinegro. Foram 17 gols na temporada, doze deles naquela fase, incluindo os três do 3-2 sobre o Sarmiento, exatamente o campeão do turno e depois do torneio. O desempenho fez El Pocho ser adquirido pelo Genoa e dali repassado ao San Lorenzo, onde seria maestro do título nacional de 2007. O resto é a história conhecida de quem se renomou no Napoli e no PSG para ser a inexplicável substituição de intervalo na final da Copa de 2014. É a única revelação de Caseros digna de nota mundial desde o profissionalismo.

Com agradecimentos ao grande amigo Esteban Bekerman, historiador do futebol argentino e amante em especial do “Mundo Ascenso”

https://twitter.com/EstudiantesOK/status/1029715673709268992

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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