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Quando Alfredo Di Stéfano foi campeão… pelo Boca

Di Stéfano é o único técnico campeão por Boca e River, estatística incrível que termina ofuscada em comparação a tantos feitos de sua trajetória no futebol. Recentemente, fez-se 50 anos de sua conquista auriazul, resgatada agora, no aniversário de 75 anos de outro protagonista da ocasião – o ex-palmeirense Norberto Madurga, autor dos gols que garantiram a única volta olímpica xeneize em um Superclásico no Monumental, comemoração que, em tempos sadios da rivalidade, foi aplaudida pela própria torcida rival.

Apenas três anos antes, Di Stéfano ainda batia bola pelo Espanyol, seu último clube. Outros cinco anos antes ainda viam ele em campo em uma final da Liga dos Campeões pelo seu Real Madrid. O prazo relativamente curto de inatividade física já era suficiente para render uma barriguinha saliente por baixo do terno do Boca. Após uma primeira experiência de técnico com o Elche, entre 1967 e 1968, La Saeta Rubia viera da Espanha para ser o que hoje se chama como manager; o treinador era José D’Amico. Mas terminou nomeado seu sucessor e incumbido de reformular um elenco envelhecido. Teve em 12 de janeiro de 1969 sua primeira partida à frente do Boca, em amistoso de pré-temporada contra um combinado de Mar del Plata (ganhou de 3-0).

Aquele verão rendeu um primeiro troféu para ambos: o Boca, pela primeira vez, sagrou-se campeão do tradicional pentagonal amistoso marplatense, após jogos contra os húngaros do MTK, o Palmeiras, os eslovacos do Slovan Bratislava e o Estudiantes recém-campeão mundial. Para Di Stéfano, o esquecido pentagonal foi o primeiro título da nova carreira de técnico. Quase 40 anos depois, em 2008, não disfarçou em entrevista à El Gráfico que o coração riverplatense não impedia um carinho pelo rival. Ele crescera no bairro de Barracas, vizinho a La Boca, onde moravam familiares – um tio seu, Dante Pertini, integrara o Boca nos anos 20, inclusive chegando à seleção.

“Eu podia jogar antes e agora, assim como Varallo, que era goleador. Aproveito e mando um saludo desde aqui a meu amigo Varallo, sempre me lembro dele, o via quando garoto, embora ele não acredite em mim. Ia ver os treinos no campo do Boca nas quartas-feiras à tarde. Tenorio, Varallo, Benítez Cáceres, Cherro e Cusatti, quase morre Varallo quando lhe disse de cor esse ataque do Boca. Meu avô vivia a 30 metros do campo, então ia visita-lo e depois atravessava para ver os treinos”. O tal Varallo ainda vivia – era o último sobrevivente da Copa do Mundo de 1930, falecendo em 2010, aos cem anos. Na mesma entrevista, Di Stéfano ressaltou que “meu pai nasceu em La Boca e era River, como eu”, no que foi então indagado se a “traição” em 1969 teria rendido recriminações paternas: “não, eu me sinto riverpaltense, mas como tinha toda a família em La Boca, sou meio boquense, e não tenho inveja, nem ciúmes, nem ódio, nem nada, é um clube extraordinário”.

O primeiro gol de Madurga naquele Superclássico histórico de 14 de dezembro de 1969. Três anos depois, acompanhou Ademir da Guia (filho de ídolo do Boca, aliás) no Palmeiras campeão brasileiro de 1972

Esse raciocínio de Di Stéfano soa curioso, mas refletia tempos sadios da rivalidade – pois, em que pese o peculiar contexto familiar do treinador, sua chegada ao Boca esteve longe de ser incomum no contexto de então. Os anos 60 foram pródigos em ver o Boca contratando para técnicos antigas bandeiras do celebrado River dos anos 40. O ex-ponta Aristóbulo Deambrossi, o ex-volante Néstor Rossi e o ex-falso 9 Adolfo Pedernera (o maior ídolo do próprio Di Stéfano) trabalharam em sequência entre 1963 e 1967. Como se não bastasse, foi um período especialmente frutífero para a torcida azul y oro: o clube foi o primeiro argentino finalista da Libertadores, em 1963, ano em que se deu ao gosto de bater fora de casa o rival na reta final da liga argentina para tira-lo da liderança. Em 1964 e em 1965, o Boca foi bi argentino seguido em disputas diretas com o rival, que tornou a perder a dianteira após Superclásicos da reta final – e ambos com gols de outra cria millonaria, Norberto Menéndez

Então sobreveio uma entressafra sem maiores conquistas no triênio 1966-68, mas nada comparado com a estiagem vista em Núñez, onde não se saboreava um troféu desde 1957, em jejum que só terminaria em 1975. Seca que esteve próximo de terminar em 1969. Primeiramente, no Torneio Metropolitano. O Millo sorriu primeiro, ao ter o gostinho de eliminar o rival (já treinado por Di Stéfano, o Boca destacara-se sobretudo no primeiro turno, onde fora invicto com só dois gols sofridos) nas semifinais. Mas então terminou goleado na decisão pela zebra Chacarita, no único título argentino dos funebreros. Apenas quatro dias depois da eliminação para o River no Metropolitano, o Boca estreava na Copa Argentina, disputada pela primeira vez. Antes de ser retomada em 2012, a Copa Argentina teve em 1969 sua única edição completa, como um campeonato tampão entre o Metropolitano e o Nacional. Ocorreu ao longo de julho, com o Boca batendo na sequência o próprio Chacarita (1-0), o Colón (5-0 e 1-0) e o Atlanta (3-1 e derrota de 1-0).

No primeiro fim de semana de setembro, começou o Torneio Nacional. Reunia, da liga argentina, os seis primeiros colocados de ambos os dois grupos do Torneio Metropolitano (Boca, o campeão Chacarita, Vélez, Independiente, San Lorenzo e Lanús pelo A; Racing, River, Estudiantes, Huracán, Platense e Quilmes pelo B) mais o líder de um quadrangular que reuniu os dois sétimos e os dois oitavos, o Unión. Esses treze clubes se juntariam a cinco sobreviventes do Torneio do Interior, disputado pelos diversos campeões regionais país adentro. No fim, sobraram o San Martín de Tucumán, o San Martín de Mendoza, o Talleres de Córdoba, o Desamparados de San Juan e o San Lorenzo de Mar del Plata. Destaque histórico ao Talleres, pela primeira vez presente em um campeonato argentino, ainda que terminasse só em 11º naquele torneio de pontos corridos em turno único. O torneio começou com o futebol argentino já sob a ressaca da desclassificação à Copa de 1970, perdendo (dentro da Bombonera, por sinal) a vaga para o Peru em 31 de agosto.

O Boca manteve-se invicto pelas primeiras doze rodadas. Eis a sequência invicta: 3-2 no San Lorenzo, 2-0 em La Plata contra o Estudiantes, 3-1 no Platense, 1-1 fora de casa com o Desamparados, 6-0 no Talleres, 1-0 fora de casa com o San Lorenzo marplatense, 4-1 no San Martín de Tucumán, 2-1 fora de casa sobre o Racing, 1-0 no Vélez, 1-0 fora sobre o Chacarita, 3-0 no Quilmes e 2-1 fora contra o Lanús. Veio então a grande zebra de um 1-0 sofrido dentro da Bombonera para o San Martín de Mendoza. Ángel Rojas, o Riquelme dos anos 60, destacou-se com duas tripletas, contra Talleres e Quilmes. Rojitas também anotou um cada sobre Desamparados, San Martín de Tucumán e Chacarita.

Marzolini em sua solitária volta olímpica extra

Mas desde ali quem também se destacava o tal Madurga. Mesmo sendo um volante, El Muñeco deixou o dele contra Estudiantes, Platense, duas vezes no San Martín de Tucumán e Lanús. Reflexos de um jogador que fora profissionalizado em 1966 no ataque, como ponta-direita, estreando já marcando gol em um 2-2 contra o River pela Libertadores. Fora justamente Di Stéfano quem o recuara para volante central, mesmo que isso significasse tirar do time a figura histórica de Antonio Rattín (tudo começou como improviso, após Rattín ser expulso contra o San Lorenzo ainda pelo Metropolitano). Veterano, o velho xerife dava lugar a um jogador de muito mais mobilidade e habilidade com a bola e precisão na marcação – embora confessasse que “não marcava muito: ia seguidamente ao ataque”, sem eliminar o cacoete de alguém acostumado demais à ofensiva.

Do Boca vencedor contínuo na metade inicial de década, restava, além do endiabrado Rojitas, o lateral Silvio Marzolini, eleito o melhor de sua posição na Copa do Mundo de 1966. Aquele Nacional renderia a sétima volta olímpica dele pelo Boca, sendo na época o recordista de títulos pelo clube. E também, de certo modo, a oitava volta olímpica… o restante dos titulares eram outras caras novas para a segunda metade dos anos 60: Marzolini era acompanhado em seu setor por Rubén Sánchez no gol (no lugar do lesionado ídolo Antonio Roma), pelo destrutor Roberto Rogel e pelo classudo peruano Julio Meléndez na zaga e Rubén Suñé (o único a superar Marzolini no século XX em títulos pelo clube) na outra lateral. Pelo meio, Madurga era acompanhado pelo uruguaio Orlando Medina, figura destacada do primeiro acesso do Colón à elite (em 1965) e pelo experiente Raúl Savoy, bi da Libertadores com o Independiente em 1964-65, ambos reforços para 1969.

Savoy ganhou a vaga na reta final, após lesão de Nicolás Novello, e igualmente chegava ao ataque em um 4-2-4 em dianteira onde Rojitas era acompanhado por Ramón Ponce e Ignacio Peña. Um elenco que encontrou espaço na agenda para ser beneficente: após a derrota para o San Martín de Mendoza, a única em toda a campanha, o time recebeu a seleção boliviana, que ao invés do tradicional manto verde trajou-se com o uniforme do The Strongest. Recentemente vitimado por um terrível acidente aéreo, em tragédia que matou inclusive diversos argentinos do clube (incluindo quem já defendesse como naturalizado a própria Bolívia), o The Strongest quase fechou as portas. A renda foi dedicada às vítimas, embora em campo a solidariedade passasse longe: Madurga, que só atuou nos primeiros 45 minutos, marcou duas vezes em um impiedoso 7-1.

Restavam em paralelo mais quatro jogos para terminar o Nacional. Após empate em 1-1 fora de casa com o Unión (permitindo que River, Independiente e San Lorenzo ainda aspirassem à taça), os líderes bateram na sequência o Huracán por 1-0 e o Independiente por 2-0, em outra tarde com gol de Madurga. O confronto derradeiro seria precisamente o Superclásico. Comandado por um velho conhecido de Di Stéfano, a lenda Ángel Labruna, o Millo só vencera a partir da terceira rodada, mas conseguia fazer do Monumental um alçapão. Todos os jogos em casa vinham significando vitórias, que incluíam um 7-0 no Desemparados (com quatro gols de Oscar Más, que terminaria artilheiro do torneio), 4-1 no San Lorenzo de Mar del Plata e 5-2 no Chacarita. O problema inicial dos pontos perdidos longe de Núñez durou até a oitava rodada. Desde a nona, o River só vencia: 1-0 no Racing, 1-0 fora no Vélez, o 5-2 no Chacarita, 1-0 fora no Quilmes, 2-0 no Lanús, 1-0 fora no San Martín de Mendoza, 2-0 no Unión e 3-1 fora no Huracán mantinham La Banda Roja no páreo para aquela rodada final.

Di Stéfano como técnico campeão pelo River em 1981, o que não impediu um retorno ao Boca em 1985

Foi a primeira e única vez em que a dupla pesada travaria um duelo direto pelo título na rodada final. O River tinha dois pontos a menos. Eram tempos em que a vitória valia 2 e não 3. Precisava manter o costume de vencer todas em casa para forçar um jogo-extra. Mas com 35 minutos de jogo essa escrita já parecia quebrada. Aos 12, Raúl Savoy lançou pela esquerda da linha do meio-campo. A bola nem chegaria na grande área, mas o goleiro José Pérez preferiu sair e se deu mal. No jogo da sua vida, o astuto Madurga usou a cabeça para tira-lo da jogada e correu mais que os marcadores para tocar a bola para o gol vazio. Aos 35, como nos velhos tempos de ponta, correu pela esquerda ao receber um passe de 40 metros de Rojitas e desferiu um chute cruzado na segunda trave do Perico Pérez.

Três minutos depois, Más recolocou os donos da casa na disputa ao descontar para 2-1. Mas o Millo só conseguiu mais um gol, aos 22 do segundo tempo, de Víctor Marchetti. Foi a vez de sobressair-se a sólida defesa xeneize para afastar os riscos de uma épica virada. A torcida da casa, reconhecendo o esforço do River e em grande ato de esportividade em meio a um jejum que chegava ao 12º ano, aplaudiu a volta olímpica rival caminhada sob seus narizes. Cavalheirismo não compartilhado pelos cartolas do River, que acionaram o sistema de irrigação para atrapalhar os festejos auriazuis. Só fizeram instigar Marzolini: ele fez questão de dar, mesmo sozinho e empapado de água, uma volta olímpica extra, rendendo uma das anedotas mais famosas do Superclásico.

Autor de nove gols em 17 jogos, o volante-artilheiro Madurga, trazido do Atlanta ainda como atleta de base por intermédio do ex-vascaíno Bernardo Gandulla, permaneceu no Boca até setembro de 1971. O protagonismo naquele 14 de dezembro de 1969, a cerca de duas semanas do seu 25º aniversário, foi tamanho que ele estreou pela seleção pouco depois, na vitória da Argentina dentro do Beira-Rio sobre o Brasil de 1970, ano em que seu casamento foi até televisionado. Em 1972, foi incorporado pelo Palmeiras como centroavante na ausência do suspenso César Maluco – ganhou o Estadual e o Brasileirão, onde chegou a ser 5º na Bola de Prata para a posição.

O retorno de César e a presença também de Leivinha para o ataque deram àquela Academia o luxo de não ter maiores saudades do argentino, contratado na sequência pelo Banfield antes de penduras as chuteiras em 1978 escondido no Cerro de Montevidéu. Di Stéfano, por sua vez, só comandou o Boca por mais um jogo naquela passagem. 48 depois do Superclásico histórico, venceu por 2-0 um amistoso com o Huracán de Tres Arroyos antes de voltar à Espanha para dirigir o clube ao qual mais se associaria como treinador, o Valencia. A estatística exclusiva como técnico campeão por Boca e River surgiria já no fim de 1981, quando conduziu o ex-clube ao título do Nacional – nada que impedisse uma segunda e menos auspiciosa passagem à frente do Boca em 1985. Contamos nesse outro Especial como foi aquela campanha millonaria de 1981, bastante acidentada e longe do futebol espetáculo dos campeões de 1969, vistos meio século mais tarde como o Boca mais artista dos anos 60.

Os campeões de Di Stéfano no Boca reunidos dez anos depois
https://twitter.com/Palmeiras/status/1211278192813789184

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

7 thoughts on “Quando Alfredo Di Stéfano foi campeão… pelo Boca

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