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Quando o nome diz tudo: 70 anos do zagueiro Daniel Killer, da seleção de 1978

Não bastasse o sobrenome literalmente “assassino”, na tradução do inglês, Daniel Pedro Killer também era apelidado de El Caballo (“O Cavalo”) ou El Perro (O Cachorro). Caracterizado como um defensor dos mais ásperos, pôde ter um recorde de gols na seleção e, sobretudo ser uma raríssima figura destacada nos dois lados da mais ferrenha rivalidade do futebol argentino – a rosarina -, ainda que se associasse muito mais ao Rosario Central do que ao Newell’s. Também um dos dois únicos vencedores de Copa do Mundo como atleta do Racing, Killer talvez descontasse nos atacantes uma possível frustração de ver seu aniversário ofuscado e menos comparecido, pois nasceu nos instantes finais do ano de 1949; algumas fontes falam inclusive em 31 de dezembro, mas o livro Quién es Quién en la Selección Argentina e própria AFA apontam como 21 de dezembro.

Uma dinastia familiar no Rosario Central

Curiosamente, ele não seria o melhor jogador da família e sim um irmão mais novo, Mario Killer – cujo apelido era, de fato, menos ácido: El Colorado, pelos cabelos ruivos. O pai coruja, um correntino descendente de suíços, exigiu dos interessados em Mario que Daniel também fizesse parte do pacote. Ambos puderam jogar juntos não só no Rosario Central, mas também no Newell’s (estiveram precisamente entre os último vira-casacas no Clásico Rosarino antes de um hiato de 35 anos sem atrevimentos do tipo) e, principalmente, na seleção – que ainda chegaria a convocar, já em 1983 (na primeira lista do ciclo de Carlos Bilardo, inclusive), um irmão ainda mais jovem, Alfredo Killer, também prata-da-casa centralista.

Daniel, sem quase passar pelas equipes de base do Central, pôde chegar primeiramente ao time adulto. A primeira vez em que foi relacionado foi justamente para um dérbi com o Newell’s, pela 21ª rodada do Metropolitano de 1970, em 27 de julho, embora o treinador Ángel Tulio Zof não chegasse a tira-lo do banco. A estreia tardou até 24 de outubro, já na 9ª rodada do Torneio Nacional, substituindo a partir do intervalo o colega Rolando Pierucci contra o San Martín de San Juan. Adiante, os canallas puderam avançar até a decisão, no mais perto do título argentino que a cidade de Rosario, a província de Santa Fe e o interior como um todo estiveram até então. Mas a participação de Killer se limitou àqueles 45 minutos, onde os colegas construíram o placar de 2-0.

O Boca seria o campeão, mas o vice permitiu ao Central participar pela primeira vez da Libertadores, sendo inclusive o primeiro clube a viver La Copa antes de conseguir um primeiro troféu na primeira divisão argentina. Killer quase ficou de fora; esteve para ser repassado ao Colón, mas Zof, pedindo-lhe perseverança, interveio por sua permanência – e, na liga argentina, colocou-o em campo já na 3ª rodada do Metropolitano, na primeira vez de Daniel como titular (0-0 com o Banfield, fora de casa), em 14 de março. No dia 25 de março, nova titularidade, agora no penúltimo compromisso rosarino na fase de grupos Libertadores, onde Killer ainda não havia jogado. O clube sapecou um 4-0 no Sporting Cristal, mas adiante viu-se eliminado pelo posterior triunfo do Universitario sobre o Sporting.

Um primeiro gol do defensor veio na 30ª rodada do Metropolitano, empatando em 1-1 com um Huracán já treinado por César Menotti. Foram ao todo onze jogos no torneio. Mas, para o Nacional de 1971, foram apenas três partidas: 0-0 fora de casa com o Gimnasia de Mendoza, substituindo logo aos 13 minutos o lateral-esquerdo Jorge Carrascosa; o Killer que se sobressaiu foi o estreante irmão Mario, que logo provou-se mesmo mais talentoso. El Colorado foi utilizado a partir da 5ª rodada (2-0 no Huracán de Ingeniero White), já como titular, e praticamente não saiu mais. Daniel só voltaria a campo na 13ª rodada, a primeira a vez os irmãos juntos – ambos foram titulares. Não saíram exatamente felizes: o Chacarita venceu por 1-0 em plena Rosario, em ocasião em que os auriazuis, curiosamente, utilizaram o campo do Newell’s. Foi em 11 de dezembro. E, em 19 de dezembro, veio a terceira e última partida de Daniel Killer na campanha. E que partida…

Com o irmão Mario Killer, em foto de 1974, ano em que enfim puderam ser titulares juntos no Rosario Central

Era a semifinal do Nacional, promovendo o mais histórico Clásico Rosarino para a torcida centralista. Em jogo único no neutro Monumental de Núñez, Mario foi titular e Daniel entrou nos oito minutos finais, no lugar de Jorge González, no lendário 1-0 mais comemorado até mesmo que a própria decisão com o San Lorenzo. Nela, apenas Mario jogou (sendo inclusive a capa da conquista na edição pós-título da revista El Gráfico, como revelação do torneio), mas Daniel teve seu aniversário bem presenteado: em 22 de dezembro, um dia depois dos 22 anos do Killer mais velho, o irmão e seus colegas fizeram do Central o primeiro campeão argentino vindo de Rosario, de Santa Fe e do interior.

Daniel seguiu sem muito espaço para 1972, mesmo que Zof voltasse: na Libertadores, apenas Mario esteve em campo em nova campanha encerrada na fase de grupos – só o líder avançava naqueles tempos e foi o Independiente, adiante campeão; foram somente 11 jogos no Metropolitano (sobretudo na reta final), contra 29 de Mario; no Nacional, Daniel jogou as oito primeiras rodadas, mas nada depois, enquanto Mario se tornava o primeiro da família Killer a aparecer na seleção: El Colorado estreou por ela em 25 de novembro, em 2-0 em Lima sobre o Peru pelo troféu binacional Copa Mariscal Castilla.

Foi mesmo em 1973 que o Killer mais velho pôde se efetivar, inicialmente sob o mesmo Zof: no Metropolitano, foram 27 jogos (Mario, por sua vez, apareceu doze vezes) e quatro gols – em especial, o do 1-1 com um Independiente que naquele ano ganharia seu primeiro Mundial Interclubes, além de ser rival do Racing pelo qual Daniel era torcedor. Gradualmente, o time-base de 1971 já aparecia quase que totalmente renovado: no gol, Américo Menutti deu lugar a Carlos Biasutto; pelo meio, o volante Carlos Aimar passou a ser acompanhado por Eduardo Solari e um recuado Aldo Poy nos lugares que eram de Ángel Landucci e Carlos Colman; no ataque, o ponta Ramón Bóveda se pareava com Roberto Cabral e Daniel Aricó onde antes haviam o mencionado Poy e e Rubén Gramajo. A defesa, por sua vez, tinha em Daniel Killer o irmão mais utilizado – só as laterais seguiam imutáveis, com Aurelio Pascuttini e Jorge González.

O técnico, por sua vez, já era Carlos Griguol, que assumira ainda no Metropolitano, onde um oitavo lugar foi o que se pôde chegar após os resultados que custaram o cargo de Zof. Daniel jogou 15 partidas da campanha campeã do Nacional, e Mario (sobrecarregado com seu período de serviço militar obrigatório a quem chegasse aos 21 anos), somente uma, na rodada inaugural do quadrangular decisivo. A conquista também propiciou a estreia de Daniel Killer pela Argentina, embora a partida não entrasse para as estatísticas oficiais; foi um 1-1 contra a seleção santafesina.

Aquele elenco campeão ainda se reforçaria para 1974 com ninguém menos que Mario Kempes. Killer, inclusive, consideraria a versão de 1974 do Central ainda melhor que as equipes campeãs de 1971 e 1973. Tendo os dois Killer acompanhados de El Matador, os auriazuis estiveram fortemente no páreo por novos títulos no semestre seguinte: na Libertadores, Central e aquele vistoso Huracán de Menotti disputaram palmo a palmo a única vaga na fase de grupos. Diferentemente de 1971 e 1972, dessa vez Daniel esteve em toda a campanha. O que não mudou foi nova queda naquela fase; no jogo-extra no neutro estádio do Vélez, Jorge González foi expulso no primeiro minuto. O adversário abriu o placar e construiu uma enganosa goleada nos dez minutos finais, quando o tudo-ou-nada dos auriazuis abriu a defesa para outros três gols sofridos. Em paralelo, seguiam no páreo pelo Metropolitano.

Os irmãos Killer juntos na seleção, antes dos 11-0 na Venezuela: Daniel, Rebottaro, Mario, Gatti e Pavoni; Bóveda, Gallego, Luque, Zanabria, Kempes e Ardiles. Em negrito, campões em 1978

Mas o festejo rosarino no Metro terminou sendo dos vizinhos: a dupla Newell’s e Central avançou junta ao quadrangular final, onde a Lepra pôde devolver com juros a queda de 1971 ao garantir o troféu em clássico realizado em pleno Arroyito – jogo para o qual Daniel estava suspenso, cabe pontuar, após 15 participações na campanha vice-campeã. Mas pôde participar de um segundo jogo pela seleção, novamente não-oficial: 2-2 com um combinado Boca-River em 29 de agosto, a marcar a estreia de Menotti como técnico argentino. Para o resto do segundo semestre, quem manteve a regularidade foi o Central, novamente vice-campeão, um pontinho atrás do San Lorenzo no octogonal que decidiu o Torneio Nacional.

Naquela edição do Nacional, Killer participou de 23 jogos e teve um consolo na semana seguinte ao bivice: por esdrúxulo regulamento, a AFA deliberou para aquele ano que as vagas na Libertadores de 1975 ficariam com os dois melhores de um quadrangular extra em turno único, a reunir os dois campeões e os dois vices dos torneios domésticos de 1974. Como o Central foi vice em ambos, viraria um triangular. E os canallas desengasgaram, vencendo as duas partidas. O Newell’s também classificou-se e assim a fase de grupos de La Copa em 1975 pôde contar com a dupla junta, pela primeira e única vez. O roteiro foi similar ao de 1974, com os representantes argentinos se igualando na liderança e assim forçando um jogo-extra – um dos mais recordados da história do Clásico Rosarino.

Naquele 11 de abril de 1975, El Matador Kempes marcou o único gol, cobrando falta, enquanto a dupla de zaga formada pelos dois Killer sorriram mais, enfim avançando de fase – o que na época significava um triangular-semifinal. E uma reviravolta tirou os canallas da decisão: começaram com um 2-0 no Independiente (então tricampeão seguido), mas então levaram de 2-0 do Cruzeiro no Brasil e do mesmo Independiente em Avellaneda. Então surraram os mineiros por 3-1 em Arroyito. O último jogo do triangular seria entre os outros dois times, com esse cenário: a Raposa avançaria à final mesmo se perdesse de 1-0, enquanto os rosarinos precisavam de triunfo rojo por 2-0. E o Independiente só levaria a vaga se conseguisse um 3-0. Foi exatamente o que aconteceu. O Rey de Copas seria tetracampeão, embora ironicamente levasse de 5-1 do mesmo Central semanas depois, já pelo Metropolitano; Killer, de pênalti, anotou o último.

As camisas alvicelestes de Killer: seleção e Racing

O foco em La Copa significou um mero 7º lugar do Central no Metropolitano, onde Killer jogou 21 dos 38 jogos. Mas aquela geração dourada que o interior argentino tinha foi muito bem observada por Menotti, que aproveitou como nunca os craques oriundos de longe da Grande Buenos Aires: montou para a Copa América (desenrolada basicamente em agosto) uma seleção basicamente proveniente dos times de Rosario e Santa Fe. O torneio marcou a tardia estreia “oficial” de Killer pela seleção, em um 5-1 dentro de Caracas sobre a Venezuela, em 3 de agosto. Foi a primeira Copa América com esse nome, a primeira sem sede fixa e a primeira sem a fórmula dos pontos corridos: detentor do título, o Uruguai estrearia nas semifinais, com as outras três vagas destinadas apenas aos líderes dos três triangulares que dividiram as outras nove seleções da Conmebol.

Só não houve preocupação em balancear as forças: Brasil e Argentina dividiram aquele grupo com a Venezuela e o segundo jogo “oficial” de Daniel Killer seria a derrota de virada para os canarinhos no Mineirão, por 2-1 em 6 de agosto. No dia 10, contudo, a Albiceleste parecia apresentar o cartão de visitas de Menotti: incipiência da Venezuela à parte, o 11-0 parecia sonoro o suficiente. Foi a primeira das duas vezes oficiais em que os irmãos Killer jogaram juntos pela seleção (a atuar, por sinal, no Gigante de Arroyito), e Daniel conseguiu seu próprio recorde, ao marcar três vezes – abriu o placar aos 8 minutos, anotou o 4-0 aos 41 do primeiro tempo e o 7-0 aos 17 do segundo tempo. Daniel Killer ainda é o único zagueiro a conseguir um hat trick pela Albiceleste. Foram também, precisamente, seus únicos gols oficiais com a seleção.

Killer já de costas comemorando seu gol (sobre o Platense) que livrou o Racing do rebaixamento, em 1977

Américo Gallego (ainda no Newell’s), Osvaldo Ardiles (recém-saído do Instituto de Córdoba), Leopoldo Luque (ainda no Unión de Santa Fe) e Kempes também deixaram os deles e estariam todos junto de Killer na Copa de 1978, estatística que só seria reconhecida com o tempo – pois a goleada não teve maior efeito prático instantâneo diante da surpreendente derrota para o Brasil em 16 de agosto, no mesmo Gigante de Arroyito. Foi a segunda e última partida de Daniel com Mario pela seleção, e também a última do irmão: El Colorado pôde cavar uma transferência ao futebol espanhol, contratado pelo Sporting Gijón. Para Menotti, ir à Europa mais atrapalhava do que ajudava a seguir nas convocações e isso significaria que apenas Daniel seguiria sendo o Killer empregado por El Flaco.

No Nacional, já sem o irmão, Killer jogou em 13 dos 23 jogos. Dono da melhor pontuação da fase de grupos, o Central murchou no octogonal final, onde foi quinto colocado. Killer, do seu lado, ficaria assíduo na seleção em 1976, com nove partidas oficiais e cinco não-oficiais, desfalcando-o frequentemente dos canallas – jogou apenas 17 dos 33 jogos do clube 8º colocado no Metropolitano 1976. No Nacional, ele até pôde jogar as 18 partidas, mas o grupo só fornecia duas vagas aos mata-matas e a equipe calhou de ficar em terceiro. Naquele torneio, o técnico centralista foi um iniciante Alfio Basile, e o trabalho pareceu promissor para que o Racing, onde brilhara como jogador, requisitasse sua volta. Basile convenceu o zagueiro a ir junto a Avellaneda, na expectativa de que ganharia mais reconhecimento defendendo um gigante. Mesmo um gigante que já adormecia.

O Racing já havia, pela primeira vez, brigado contra o rebaixamento em 1976 e gastou o que tinha e o que não tinha para reagir – notadamente em outro jogador apreciado por Menotti na seleção, o meia Ricardo Villa (então no Atlético Tucumán) e no regresso do velho ídolo Agustín Cejas, que vinha do Grêmio. Villa e Killer seriam os únicos a vencerem uma Copa do Mundo provenientes do Cilindro, mas essa estatística não serviu exatamente para que virassem os maiores ídolos de uma torcida que já se acostumava ao sofrimento. O timaço de papel, a conter futuros outros finalistas de Copa do Mundo (os jovens Gabriel Calderón e Julio Olarticoechea), não deu liga no Metropolitano e novamente brigou para não cair. O 13º lugar entre 23 times mascarou que apenas três pontos separaram a Academia da degola. Killer, ao menos, teve estrela naquele contexto pesado.

Mesmo constantemente desfalcando o time para jogar oito vezes oficialmente pela seleção entre janeiro e setembro (e outras quatro vezes não-oficialmente: curiosamente, contra o Newell’s, a dupla Boca e River e por fim o Real Madrid, que celebrava seus 75 anos), Killer esteve em 34 das 46 partidas do Racing no Metropolitano e um cabeceio seu marcou na última rodada o único gol de um confronto direto com o Platense, que também brigava para não cair. Não se destacou “só” pelo gol salvador, com a El Gráfico lhe conferindo nota 8 por também desempenhar “eficaz tarefa” na defesa junto a Cejas (cuja segurança em contraste com os vexames da Acadé até lhe fariam estar entre os pré-convocados à Copa do Mundo, apesar da idade elevada) nas numerosas tentativas do adversário.

No Nacional, por sua vez, o Racing (com um Killer quase absoluto, em 12 dos 14 jogos) recobrou alguma grandeza. O problema da vez já era um regulamento impiedoso para que o torneio, iniciado já em novembro, tivesse calendário enxuto: somente o líder avançaria da fase de grupos. Seria o Talleres, adiante vice-campeão do… Independiente. A ascensão do Talleres também respingou em Killer de outro jeito. Um ano antes da Copa do Mundo de 1978 começar, ele era um dos titulares na equipe cujo corpo técnico de Menotti chegara a um consenso: Hugo Gatti, Alberto Tarantini, Jorge Olguín, ele e Jorge Carrascosa, Osvaldo Ardiles, Américo Gallego e Ricardo Villa, René Houseman, Leopoldo Luque e Omar Larrosa. De fato, foi basicamente a escalação titular usada na histórica partida que serviu de estreia a Maradona, naquele 1977, contra a Hungria, exceto por Daniel Bertoni no lugar de Larrosa (Dieguito entraria no decorrer do jogo substituindo Luque).

Pré-convocados em 1978: Killer é o último da fileira do meio. Curiosamente, está entre os concorrentes Galván (fileira da frente) e Oviedo (fileira mais alta)

O tempo foi suficiente para mudanças substanciais: Gatti sequer foi ao Mundial; Olguín foi improvisado na lateral-direita enquanto Tarantini foi deslocado ao posto do desistente Carrascosa. Kempes fizera valer na Espanha um retorno como único chamado por Menotti desde o futebol europeu, e começou no posto imaginado a Larrosa – enquanto o recente vice-campeonato do Talleres colocou José Daniel Valencia onde estava Villa e Luis Galván (avaliado como alguém de mais velocidade e destreza) como um dos zagueiros; já o não menos espetacular Daniel Passarella, consolidado na hora certa, pelo título do seu River no Metropolitano 1977, se apoderou da outra vaga na zaga.

“Luque tinha que aprender ou aprender: o 1,90m e quase 100 Kg de Daniel Pedro Killer respirando-lhe na nuca em cada treino não eram algo para poder andar tranquilo”, recordaria já em 1999 a El Gráfico. O próprio Killer, sem muita modéstia, relataria assim, em 2003: “Menotti me pôs para marcar Luque. Me disse: ‘você tem que segui-lo até debaixo da cama. Marque-o como se fosses um defensor europeu, à morte’. Eu lhe obedecia. Tinha uns duelos com El Pulpo [apelido de Luque]… às vezes, nos exaltávamos. Mas deu resultados, observe depois como Luque aguentou nesse Mundial e o importante que ele foi”.

De fato, se Kempes roubou a cena na decisão, foi Luque o principal homem-gol do time nos outros jogos, superando até a morte de um irmão em pleno torneio. O perfil de Killer no livro Quién es Quién en la Selección Argentina corrobora as declarações acima do zagueiro: “um defensor áspero, de poucos recursos técnicos, mas muito seguro no jogo aéreo e forte na hora de marcar (…). Dono de grande disciplina tática, se assemelhava mais a um zagueiro europeu que a um rio-pratense. Na seleção nacional, seu melhor aporte foi – curiosamente – quando não jogou nem sequer um minuto: durante a Copa do Mundo de 1978. O treinador César Menotti sempre destacou o importante que foi Killer como ‘examinador’ dos atacantes argentinos nos treinos”.

Já aquela mesma nota de 2003 revela que fora dos treinos, Killer contribuía ao ambiente já como uma figura diametralmente oposta ao jogo áspero, desde a pescarias que organizava atrevidamente com Kempes e o goleiro reserva Héctor Baley aos autoconvites para almoçar na casa de Alberto Tarantini após provar as qualidades culinárias da mãe do colega, passando pelas “resenhas”: “com El Zorro Passarella, Houseman, El Tolo [Américo Gallego] e Kempes armávamos todas as piadas. Chamávamos Daniel de Jaiminho, isso era semente de confusão”, em referência ao carteiro do seriado Chaves. Às vezes, era brincalhão até demais: “íamos ao estádio enquanto jogavam Brasil x Polônia. Eu levava o rádio e a cada gol que o Brasil metia, dizia ao Flaco: ‘ui, César, agora temos que fazer uns quatro gols no Peru, que merda faremos?’. Eu era o que mais zoava e tratava de afastar o drama da situação. El Flaco às vezes ria, mas quando terminou o jogo do Brasil me pediu que parasse de zoar”. A ordem teria vindo “apenas com o olhar”, completou já em 2008.

Mas ele não perdia a seriedade: “Passarella, Luque, Killer e eu éramos como a cabeça do grupo. Brigávamos pelos prêmios, falávamos pelo elenco”, destacaria Ardiles. Também foi um dos “jornalistas” do elenco. Em tempos distantes de smartphones a qualquer um, registrava em filmadores rudimentares o ambiente. Também eram tempos distantes da permissão da FIFA no tocante aos reservas: se hoje até cinco substituições estão permitidas, na época não era possível sequer que todos os suplentes ficassem à disposição; cabia ao treinador escolher apenas cinco para serem relacionados ao banco – normalmente, um para cada posto (um goleiro, um zagueiro, um meia, um atacante e algum coringa). Justamente a grande final teria sido o jogo que Killer mais esteve perto de disputar na Copa.

Curiosa imagem da volta olímpica de 1978: Killer, com um Bertoni já sem camisa, é saudado exatamente pelo assistente técnico Roberto Saporiti, que prejudicara sua escalação para a final

Os atributos de rosarino foram, pelo menos, motivos de debate no corpo técnico: preocupado com o forte jogo aéreo holandês com Dick Nanninga, El Flaco Menotti opinava por ter o racinguista na manga, mas foi convencido pelo assistente Roberto Saporiti que Nanninga não teria condições de jogo. Saporiti, que já havia sido voto vencido por ser favorável à permanência de Maradona, entendia que a lesão que o tanque laranja padecia afastava riscos e opinava por Miguel Ángel Oviedo, a quem conhecia bem como técnico daquele Talleres de 1977 e visto como mais versátil para as posições defensivas. E aconteceu algo chato…

Em 2008, El Sapo Saporiti já havia comentado que “quando Nanninga se preparou para entrar, El Flaco me olhou mal. ‘Não acontece nada, fique tranquilo’, lhe disse. E quando meteu o gol, me ultraxingou em cores”. Em 2015, ele foi mais detalhista: “me parecia melhor Oviedo. [Menotti] pensou e se decidiu por El Cata [Oviedo]. É que eu debatia tudo com El Flaco. Sei que há muita gente que diz sim fácil, não é meu caso. Eu me sentava em uma ponta do banco e El Flaco na outra, com [o auxiliar Rogelio] Poncini, para ter diferentes visões. De golpe, escuto: ‘Sapo, la concha de tu madre, veja quem está se aquecendo’. Era Nanninga. ‘Sapo, y la puta madre que me parió, para que mierda te escutei?’, seguia. Acontece”.

Menotti, por sua vez, dera em 2014 o depoimento (já humorado) de que “xinguei demais o Sapo. Ele vinha seguindo os treinos da Holanda, lhe perguntei por Nanninga, que era um grandalhão. ‘Não joga’, me disse. ‘Tens certeza?’, devolvi a pergunta. ‘Certeza, está lesionado, não pode nem caminhar’. Pronto. Eu tinha Killer, que era um dos grandalhões e o podia marcar, mas escutei o Sapo e não o pus no banco. Depois Nanninga entrou e empatou, eu queria matar o Sapo“. O título significou também o fim da estadia de Killer na seleção – sua última partida oficial, curiosamente sua única como capitão, foi em 25 de abril de 1978, em derrota amistosa de 2-0 para o Uruguai em Montevidéu. Ainda apareceu em uma penca de jogos-treino pré-Copa, o último em 13 de maio, um 7-0 sobre o combinado do sul da província de Buenos Aires.

Ele também não durou muito mais tempo com sua outra casaca alviceleste, a do Racing, mas por vontade própria. Concentrado desde janeiro junto aos demais pré-convocados pro Menotti, ele só veio a jogar pela Academia em 1978 já em 23 de julho, na 19ª rodada do Metropolitano, embora logo se fizesse presente em 17 dos 21 jogos que restavam de uma campanha de 9º lugar. Novamente, o Nacional reservou tardes melhores no Cilindro: dessa vez, vice-líderes na fase de grupos também avançavam. Novamente segundo colocado no grupo do Talleres, o Racing se deparou com um Unión no auge da história e foi eliminado logo nas quartas-de-final. Killer só deixou de participar em dois jogos, mas se ressentia de dores físicas. A saudade de Rosario, a fazê-lo deslocar-se frequentemente de carro para rever a família, também era um problema.

Killer(s) em sangre y luto

O Racing já havia vendido Villa ao Tottenham e teria apalavrado ao fim de 1978 repassar também Killer ao clube londrino, em tempos menos atrativos do futebol inglês a estrangeiros – sobretudo sul-americanos. O zagueiro só aceitou deixar o Racing se fosse para retornar a Rosario e ao Central, mas o ex-clube o recusou, alegando falta de caixa para repatria-lo. O Newell’s soube do desejo de Killer em voltar à cidade e lhe formalizou uma proposta, destacando a aceitação prévia do elenco em tê-lo consigo. O campeão do mundo ainda utilizou esse fato em uma última tentativa de convencer o Central, mas os canallas reagiram com ceticismo à possibilidade de uma “traição” – embora travessias não chegassem a ser incomuns naquela época.

Daniel e Mario, agora juntos no Newell’s, posam com outro irmão: Alfredo Killer

O próprio César Menotti, ex-jogador centralista, havia sido assistente técnico de Miguel Juárez (outro antigo ídolo auriazul) quando este treinou o Ñuls em 1970, assim como Ángel Tulio Zof começara a carreira de treinador como rojinegro, em 1965 – década que vira oito jogadores atuarem pelos dois rivais. Mais recentemente, o meia Oscar Coullery, da Lepra campeã em 1974, havia virado a casaca e 1977 e até seguia em Arroyito naquele ano de 1979. Killer estreou oficialmente pelo Newell’s já na rodada inaugural do Metropolitano 1979, nada bem: no estádio do Banfield, levou cartão vermelho direto ao acotovelar sem bola um adversário do Quilmes aos 44 minutos do segundo tempo, infração que escapara dos olhos do árbitro mas não de um bandeirinha. Mesmo assim, firmou-se: dos 18 jogos do clube no Metro, esteve em 15.

Diferentemente dos anos anteriores, não foi um torneio exatamente em pontos corridos: os 20 clubes foram divididos em dois grupos, com líderes e vice-líderes avançando a mata-matas. Faltou pouco: mais precisamente, um ponto atrás do Vélez e do Argentinos Jrs maradoniano, e dois atrás do líder (e futuro campeão) River. Não contente com um Killer, o Parque Independencia logo abrigou outro: para o Torneio Nacional, contratou-se o irmão Mario junto ao Real Betis.

El Colorado estreou como leproso justamente em pleno Clásico Rosarino, na 5ª rodada, um 2-2 em Arroyito que também viu pela primeira vez os irmãos Killer juntos em roupas sangre y luto. Novamente, líder e vice-líder de cada grupo avançariam aos mata-matas, e, também novamente, faltou pouco: dois pontos abaixo de um River que outra vez terminaria campeão. Mario Killer, após figurar em dez dos 14 jogos do Newell’s no Nacional, rumou ao Independiente (não, os Milito não foram os primeiros irmãos que se separaram em Avellaneda…). Daniel, que só se ausentara de uma partida, seguiu no Parque Independencia por mais duas temporadas, boas: atuou 31 vezes em 36 possíveis no Metropolitano 1980, onde o 6º lugar mascarou que os rojinegros ficaram a quatro pontos do vice-campeonato.

No Nacional, onde o zagueiro só faltou a uma partida, o time liderou sua chave, e tendo a pontuação amis alta da fase de grupos – e, nas quartas-de-final, eliminou um River que vinha de três títulos argentinos seguidos. Trajetória promissora ofuscada pela eliminação justo para o Central nas semifinais, especialmente porque adiante o arquirrival terminaria campeão. Houve um troco, no Metropolitano 1981, onde Daniel Killer (31 jogos em 34 possíveis) abriu um 3-0 no Clásico Rosarino válido pela 5ª rodada. Naquele torneio, foi inclusive o capitão de um NOB que fechou o pódio, ainda que longe do páreo pela taça contra o Boca maradoniano.

O Nacional (o zagueiro atuou em 10 jogos dos 14 jogos) já não foi tão bom, em campanha de meio de tabela no grupo que viu a classificação de Independiente (do irmão Mario, que era até o capitão do Rojo) e Vélez. A falta de títulos, em contraste aos dois erguidos com os canallas, impediram que Killer fosse reconhecido como ídolo histórico no Coloso del Parque. Mas ele, embora não voltasse à seleção, é reconhecido como um dos que melhor souberam jogar pelos dois rivais mais ferrenhos do futebol argentino.

Como capitão do Newell’s contra Maradona e reencontrando os irmãos Mauro e Alfredo na luta contra a queda em 1984: estava no Unión

É que depois dele e do irmão, a cidade de Rosario até seria movimentada com alguma frequência com novos doblecamisetas: o tal Coullery teve peito de voltar ao Newell’s em 1981, ao passo que Sergio Robles fez algo parecido – ídolo rojinegro nos anos 70, viraria auriazul em 1982 para revirar a casaca já em 1983. E o ano de 1984 veria a volta do próprio Mario Killer a Arroyito, a contratar também o goleiro Juan Carlos Delménico, antigo reserva da Lepra campeã em 1974. Mas então se passariam nada menos que 35 anos sem novas travessias no dérbi – um pouco pelo que aconteceu com o Central em 1984. O que nos leva ao próximo tópico.

No fim da carreira, uma terceira camisa rosarina

Em 1982, Daniel reforçou o Vélez. O Torneio Nacional, agora realizado no primeiro semestre, viu uma campanha razoável do Fortín, dois pontos abaixo da classificação no Grupo D – o problema é que o campeão seria justamente o tradicional rival Ferro Carril Oeste. No Metropolitano, La V Azulada terminou em 5º. Killer não chegou a ser exatamente o maior protagonista velezano (foram trinta partidas no ano em sessenta oficiais da equipe – 10 no Nacional e o restante no Metro), mas pôde cavar uma transferência ao lucrativo narcofútbol colombiano, onde esteve em 1983 a serviço do Bucamaranga.

Em 1984, ele foi repatriado, reforçando o Estudiantes de Río Cuarto no Nacional, sem que o clube do interior cordobês tivesse alguma chance em um grupo com River e Huracán. Para o Metropolitano, retornou à província de Santa Fe, agora como jogador do Unión – pelo qual chegou a enfrentar os irmãos Alfredo e Mario ao reencontrar o Rosario Central. Ironicamente, a família precisou se dividir na luta contra o rebaixamento. Daniel, ainda com fôlego para atuar em 28 das 36 rodadas, levou a melhor: seu Tatengue ficou na última colocação salva da degola na tabela de promedios, uma acima dos rosarinos. O reencontro, inclusive, foi um sonoro 3-0 unionista, já na 24ª rodada. Nada que impedisse que Daniel e Mario figurassem na edição especial em que a revista El Gráfico elegeu os maiores ídolos canallas, em 2012.

Daniel Killer seguiu no Unión para o ano de 1985. Titular na razoável campanha alvirrubra no Nacional – o  Tate caiu para o River nas oitavas-de-final -, perdeu espaço na subsequente temporada 1985-86, a inaugurar um campeonato de calendário europeu. Só esteve em nove partidas, a última ainda em 18 de dezembro, na 24ª rodada, antes da pausa de fim de ano. Em 1986, voltou a Rosario, agora para jogar em um dos nanicos locais, o Argentino, que naquele primeiro semestre precisaria encarar uma seletiva para a nacionalizada segunda divisão da temporada 1986-87. Apesar do nome, o campeonato argentino era restrito em todas as suas divisões às áreas da Grande Buenos Aires, La Plata, Rosario e Santa Fe, algo que foi compensado entre 1967 e 1985 com o advento do Torneio Nacional – a reunir os times do torneio argentino (renomeado de Metropolitano naquele período) com os campeões das ligas do interior.

Com o fim do Torneio Nacional, a AFA instituiu aquela nacionalização da segunda divisão. E o Argentino não se deu bem, na lanterna de sua chave, precisando disputar a terceirona de 1986-87. O descenso foi o ato final de uma carreira ainda afiada naquela década: “Daniel Killer te matava com pontapés”, relembrou em 2017 uma espécie de Martín Palermo dos anos 80, o ex-atacante José Iglesias, ao ser indagado sobre os adversários que mais temia. O próprio Kempes, depois adversário do zagueiro quando passou ao River, já havia ido na mesma linha, em 2002: “um jagunço para bater. Te arrancava a cabeça…”. El Caballo não se conteve, ao ser procurado pela revista El Gráfico para escalar seu próprio combinado Central-Newell’s dos sonhos: não só se escalou, como sua justificativa foi um “dentro de campo eu te matava, hehe”.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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