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Recordes, loucura e longevidade sob as traves: 75 anos de Hugo Gatti

Um adiantado às normas de que goleiros precisam jogar bem também com os pés já nos anos 60, Hugo Orlando Gatti não se resumia a isso: intuitivo, ágil e autoconfiante, teve a carreira mais longa no futebol argentino em anos (26, parando aos 44 anos, outro recorde) e jogos (765), além de ser também o segundo com mais partidas pelo Boca, onde foi o espalhafatoso goleiro titular das duas primeiras Libertadores e do primeiro Mundial ganhos pelos xeneizes; com passado no rival River, El Loco está entre os raros homens que serviram por ambos a seleção (onde era o titular pouco antes da Copa de 1978 até uma lesão no joelho direito a seis meses do Mundial tira-lo do páreo) e ainda é o único goleiro vira-casaca no Superclásico. Também é ele o recordista de pênaltis defendidos na elite, igualado ao contumaz concorrente Ubaldo Fillol (26). Há 75 anos, Gatti nascia em Carlos Tejedor. Hora de relembrar esse fenômeno que brilhou também nas fases áureas de Atlanta e Unión, além de Gimnasia LP – e diversos outros clubes cujas camisas usava para vestir-se nos anos 80.

O primeiro clube de Gatti foi o Atlanta, estreando em 1962 na primeira divisão após conciliar juvenis como vendedor de geladeiras e chapéus no negócio familiar – e superando desde um teste desastroso onde levou 14 gols, mas ainda assim comovendo o ex-vascaíno Bernardo Gandulla a mantê-lo, à saudade da família que permanecera no interior. Sumido da elite desde 1984, na época o time do bairro de Villa Crespo vivia sua fase áurea, se intrometendo cinco vezes entre os cinco primeiros do campeonato entre 1958 e 1964. O goleiro titular em 1962 foi Néstor Errea, cuja irreverência seria assumida inspiração para o novato. Errea partiu em 1963 para o Boca, sendo o goleiro titular das finais contra Pelé na Libertadores antes de vencer o torneio pelo Estudiantes em 1970 (após ter passado também por Vasco e Peñarol, dentre outros). Gatti então ficou livre para ser um dos pilares de nova boa campanha do Bohemio, que terminou a dois pontos do pódio. Outra inspiração inegável a Gatti estava no River, onde a lenda Amadeo Carrizo se diferenciava também pelo incomum uso de luvas para a época – o livro Quién es Quién en la Selección Argentina resume que Gatti tinha “o desenfado de Errea e a qualidade, técnica e sentido de antecipação de Carrizo”.

Luvas, inclusive, não eram um artigo fácil de se obter, pois mais que Gatti procurasse. Carrizo soube e, ao fim de um duelo, presenteou o jovem com um par, fazendo-o ir saltitando ao vestiário. Ao fim do torneio, o jovem (e já louco: chegou a ser suspenso por uma semana ao bater um tiro de meta sobre o próprio travessão) e seu colega Mario Bonczuk terminaram contratados pelo próprio River, em um pacote millonario de reforços que incluíam o velezano Jorge Solari e dois campeões de Libertadores com o Peñarol: o atacante Luis Cubilla, que vinha do Barcelona, e o volante Roberto Matosas, importado pelo recorde de 33 milhões de pesos. Apesar do gesto de Carrizo, Gatti não titubeou em chegar chutando a porta, já se dizendo melhor que o veterano (“Amadeo, você é um carro velho e eu sou uma Mercedes-Benz”). Para piorar, teve uma estreia trágica, pela amistosa Copa Newbery, mas em pleno Superclásico. Ex-River, o rival Norberto Menéndez lhe disse “palhaço, hoje te faremos quatro” e isso se cumpriu: o Boca ganhou de 4-0 após abrir o placar aos 2 minutos em falha clamorosa do estreante, adiantado demais e assim encoberto por um chute arriscado pelo defensor Alcides Silveira a quarenta metros de distância.

Carrizo e (usando a camisa do francês Racing de Estrasburgo) Fillol, seus maiores rivais

Alguns torcedores revoltados queimaram por engano um carro que pensavam ser do goleiro – que tinha outra inspiração em Muhammad Ali a ponto de usar o nome original do pugilista, Cassius, para nomear um dos filhos (e de querer nomear outro como Ali, no que foi proibido pela esposa). Sem render em 1964, o time pôde lutar pelo título em 1965, terminando o primeiro turno na liderança, quatro pontos à frente de Vélez e do Boca – que, todavia, levou a melhor em Superclásico no Monumental (2-1) no qual Gatti fora o titular. Com Carrizo no arco, sobreveio oscilação no segundo turno, favorável ao arquirrival, que venceu novamente o dérbi e terminou campeão com um ponto à frente. Carrizo começou na titularidade em 1966, participando dos sete primeiros jogos da fase de grupos na Libertadores (na primeira vez em que o torneio admitiu livremente vice-campeões nacionais), entre fevereiro e o início de março, até ser substituído por Gatti no intervalo de um 1-0 parcial contra o Universitario, em 2 de março. O River terminou ganhando de 5-0 e o reserva se apossou momentaneamente da posição, também em função do ritmo frenético: o Millo jogou uma vez a cada dois dias até a data de 10 de março (2-1 no Deportivo Italia).

El Loco seguiu no arco até o início de abril: no dia 3, já pelo campeonato argentino, foi Gatti quem participou de um 3-1 no Superclásico que rendeu a primeira vitória do River sobre o rival dentro de La Bombonera em dez anos e meio. Mas no dia 12, quando foi necessário encarar a face copeira do bicampeão Independiente na segunda rodada da segunda fase de grupos da Libertadores, Carrizo voltou para jogar sete das oito partidas que restariam no torneio, incluindo a traumática derrota na final para o Peñarol. Diante da recusa de Carrizo a convocações da seleção, traumatizado como bode expiatório do vexame de 1958 (o que já havia feito outro reserva no River, Rogelio Domínguez, ir em seu lugar ao mundial de 1962), Gatti terminou incluso na pré-lista de convocados para a Copa de 1966. Edgardo Andrada se lesionara e os nomes que dividiam a primazia eram os de Antonio Roma, do Boca regularmente campeão doméstico e titular em 1962, e de Miguel Santoro, do Independiente bi da Libertadores. Gatti jogou pela primeira vez pela Albiceleste substituindo Santoro em amistoso pré-Copa não oficial contra o clube italiano Cagliari em 1º de junho, uma vitória por 2-0 no estádio do San Lorenzo.

Seguiram-se mais três amistosos, já na Europa, em que Roma e Santoro se revezaram. A única derrota veio com Santoro e ele acabou cortado. Gatti – e Rolando Irusta, do San Lorenzo – foram confirmados para a reserva de Roma na Inglaterra. Ao voltar da Copa (com muitas roupas extravagantes de Londres, mas fazendo questão de declarar que já ostentava o cabelo que tinha antes dos Beatles popularizarem o corte: “Deus me fez assim”), Gatti permaneceu na alternância com Carrizo, ainda que gradualmente começasse a se sobressair; por exemplo, foi El Loco o titular em quatro Superclásicos seguidos entre 1967 e o início de 1968. Chegou até a zombar da torcida boquense ao varrer a área com uma vassoura que haviam lhe atirado. Nesse período, Gatti participou de mais três jogos pela Argentina (um 1-1 com o Paraguai na estreia oficial de Gatti, em 13 de outubro, além de um 6-1 não-oficial contra o combinado de Posadas em 2 de novembro e uma derrota de 3-1 para o Chile em Santiago em 8 de novembro), treinada pelo mesmo Renato Cesarini que o conhecia no River. Carrizo voltou momentaneamente na reta final do Metropolitano de 1968, emendando um recorde de jogos sem sofrer gols no país, mas caindo na semifinal contra o San Lorenzo e sendo então vendido ao Millonarios.

Até brilhar no Boca, Gatti passara por Atlanta, River, Gimnasia LP, Unión e seleção

Não que Gatti aproveitasse: na campanha quase campeã do Torneio Nacional, quem terminou titular foi o reforço Alberto Gironacci. El Loco terminou repassado ao Gimnasia LP, que buscava reagir à campanha de quase rebaixamento em 1968. Com Gatti atrás e o superartilheiro Delio Onnis à frente, isso evoluiu para um enganoso 7º lugar no Metropolitano de 1969, a três pontos do terceiro, em campanha que incluiu um 2-0 em Clásico Platense contra o Estudiantes que dali a um mês seria bi da Libertadores. A campanha no Metropolitano de 1970 também foi embolada, um 9º lugar a seis pontos do campeão Independiente, germinando o elenco apelidado de La Barredora (“A Vassoura”) que encantou no Torneio Nacional. Após terminar um ponto acima do River para se classificar às semifinais, porém, o Lobo terminou atrapalhado por uma inoportuna greve que tirou os titulares do mata-mata. O bom desempenho não bastou para Gatti ser lembrado à seleção; já ostentando cabelos compridos e roupas chamativas, seu estilo não era apreciado na AFA, gerida por interventores nomeados pela ditadura.

A campanha de 1970, por outro lado, foi a única digna de nota do Gimnasia na época até a do Nacional de 1974, em que os triperos ficaram a um ponto de disputarem octogonal final. Até lá, as campanhas custavam a superar o 10º lugar, com as alegrias alviazuis se resumindo a triunfos sobre o vizinho – com Gatti participando de um 4-1 no Estudiantes em 1972 e de um 3-1 em 1973, ambos como visitante, dentre outros triunfos mais apertados de um clássico que permaneceu equilibrado até 2006. Em 1975, sob ordem do técnico Juan Carlos Lorenzo (treinador da seleção nas Copas de 1962 e 1966), o Unión contratou o já veterano goleiro para a cidade de Santa Fe. Gatti já tinha 31 anos incompletos, mas foi no Tatengue que realmente começou a ter uma carreira exitosa, com direito a quatro pênaltis defendidos, incluindo contra o campeão River, na celebrada campanha unionista no Metropolitano de 1975: 4º lugar, a dois pontos do vice. O técnico da seleção era César Menotti, que notou que a geração de ouro argentina incluía craques espalhados pelo interior, chamando para a Copa América jogadores baseados em Santa Fe e Rosario. Assim, Gatti retornou após oito anos à Albiceleste. O Unión não foi tão efetivo no Nacional, mas seu técnico Lorenzo foi contratado por um Boca que vivia jejum desde 1970.

Gatti, que parecia encaminhado ao Cosmos para jogar com Pelé, e o ponta Heber Mastrángelo, outro ex-River, foram a reboque para fazer história (bem como Rubén Suñé). O passado millonario não pesava, pois ambos sempre haviam sido torcedores do rival, com Gatti já vestindo a camisa xeneize em ensaio fotográfico de 1973 na qual a revista El Gráfico convidou diversos jogadores a confessarem os times pelos quais torciam. Gatti não demorou a se apossar da vaga de titular, diante também das dispensas dos concorrentes Rubén Sánchez e Enrique Vidallé – ambos goleiros com a seleção no currículo, antes ou depois. O Boca não convencia exatamente no início do Metropolitano, mas já em 20 de março Gatti fazia sua primeira partida pela seleção como auriazul, justamente a partida mais lembrada dele pela Argentina: na neve de Kiev, a Albiceleste bateu a URSS por 1-0 com El Loco, aquecido por uísque rente à trave, pegando tudo. Gatti se tornava ali o primeiro a servir à seleção como jogador de Boca e River desde que a lenda José Manuel Moreno (descrito pelos mais velhos como mais habilidoso do que Maradona) conseguira o mesmo ainda em 1950. Gatti também foi o terceiro no geral de um feito inaugurado ainda em 1918 pelo amador Francisco Taggino.

Gatti também “vestiu” camisas de outros clubes, usando em campo presentes pós-jogos de adversários. Nas imagens, as do Atlético de Madrid, Fiorentina (com Teófilo Cubillas) e Santos (com o sucessor Carlos Navarro Montoya)

Em paralelo, o Boca cresceu na hora certa no Metropolitano de 1976: 4º colocado em seu grupo na primeira fase, incluindo uma surra de 5-1 para o Rosario Central em noite de gala de Mario Kempes (autor de três gols) e um chocante revés de 3-1 para o rebaixado San Telmo, esteve invicto no dodecagonal final e pôde ser campeão mesmo pontuando no geral menos que o vice Huracán. Curiosamente, os dois jogos finais foram mandados no Monumental, onde o Boca se sentiu em casa: bateu o concorrente Huracán e também o Unión para dar a volta olímpica no palco do rival. A campanha foi uma redenção para Gatti em diversos sentidos. Em 11 de abril, ele chegou a fraturar a mandíbula em quatro pedaços ainda na 11ª rodada, no 1-1 com o Independiente, mas passou cerca de apenas 40 dias longe dos gramados – em 9 de junho, ele também já reaparecia na seleção, em um 3-0 sobre o Uruguai dentro do Centenário. Foi o último triunfo da Albiceleste sobre a Celeste na casa rival até a noite de Mario Bolatti em 2009 pelas eliminatórias, ainda que Gatti acabasse expulso na ocasião (foi no século XX o único goleiro a levar vermelho pela Argentina).

El Loco também foi premiado em agosto em amistoso contra o Platense onde foi autorizado a jogar como atacante, sonho antigo para o qual fez primeiramente questão de consultar os adversários se lhe permitiam (em 2005, declararia que como centroavante seria Pelé se comparado a Maxi López…). Suas excentricidades, porém, chegaram a ser reprimidas pela AFA, que o suspendeu no início do Torneio Nacional por trajar bermuda e bandana. Gatti não abandonaria os itens. Ao contrário: seria imitado descaradamente por Miguel Ángel Ortiz, que na mesma época defendia o Atlético Mineiro. Nada que atrapalhasse o início arrasador no Nacional, invicto nos seis primeiros jogos. Adiante, os xeneizes novamente triunfaram sobre o forte Huracán da época, agora nas semifinais, antes de baterem o River no único Superclásico válido como literal final de campeonato argentino – no qual Gatti fez a defesa de sua vida, segundo o próprio, ao recuperar-se para evitar um golaço de longa distância em chute arriscado pelo habilidoso Juan José López. Uma ironia era que até novembro o Boca vinha de quatro duelos sem vencer o grande rival. O que já seria suficiente como ápice (a ponto de Gatti cogitar em aposentar-se) seria, na verdade, apenas uma saborosa escala para voos ainda maiores.

Na Libertadores de 1977, a forte defesa coordenada por Gatti passou em branco no primeiro turno, com direito a duas vitórias sobre o River nessa fase onde só o líder avançava. As redes xeneizes só foram balançadas já no triangular-semifinal, sem que a vaga na decisão ficasse a perigo. Gatti, que vinha de uma primeira operação no joelho, a ponto de Lorenzo reveza-lo com outros três jogadores na disputa do Metropolitano, seguiu firme na Libertadores para ser o herói da decisão por pênaltis contra o Cruzeiro (detentor do título): ao espalmar o chute de Vanderley desferido no canto esquerdo, garantiu o primeiro título do Boca em La Copa; com rara humildade, diria que deu sorte no lance. Foi em paralelo àquelas glórias seguidas que Gatti fez suas derradeiras aparições pela Argentina, entre setembro de 1976 e junho de 1977, incluindo amistosos não-oficiais curiosos, como os contra a dupla Boca e River (ambos em fevereiro de 1977, um 2-2 com o Millo e 1-0 no próprio clube). No segundo semestre de 1977, Menotti passou a dar oportunidades a Héctor Baley, do forte Huracán da época. Em paralelo, o River praticamente assegurou o título do Metropolitano triunfando na Bombonera, em tarde onde uma típica saída de Gatti como zagueiro para cima do adversário Pedro González não impediu um drible e o sofrimento do gol.

Sempre excêntrico, Gatti atendia repórteres enquanto cuidava do visual e nos anos 80 já arriscava uma ainda “proibida” cor rosa a caminho dos jogos

Nos fins de 1977, sentindo nova lesão no joelho, Gatti pediu licença a Menotti. O técnico, descrente da seriedade da lesão, não perdoou, anunciando ainda em dezembro que os goleiros pré-convocados seriam Fillol, Baley, Ricardo La Volpe e Agustín Cejas (o cortado). Gatti afastou-se dos gramados em janeiro e pôde voltar ainda em março, mas não convenceu Menotti a ser incluso de última hora, regalia que o treinador, promovendo desde janeiro uma longa concentração, reservaria somente a Mario Kempes e Norberto Alonso. Ironicamente, nenhum jogador do Boca foi ao Mundial, e cerca de um mês depois da conquista inédita da seleção foi a vez do próprio Boca ser campeão do mundo, com Gatti e colegas promovendo um 3-0 sobre o Borussia Mönchengladbach dentro da Alemanha. Focado no exterior, o time derrapou no Metropolitano a ponto de perder a taça para o modesto Quilmes, mas poucos meses depois seria bi na Libertadores – com direito a um 2-0 sobre o River dentro do Monumental para garantir-se na decisão contra o Deportivo Cali.

A “Era Lorenzo”, agora despreocupada com campanhas domésticas em prol de novas copas internacionais, encerrou com a terceira final seguida de Libertadores, em 1979. Dessa vez, o Boca ficou de vice, para o Olimpia, gerando um desânimo que rendeu sete jogos sem vencer na reta final do Metropolitano. A substituição de Lorenzo pelo velho ídolo Antonio Rattín não surtiu efeito e os resultados continuaram pobres no Nacional de 1979 e ao longo do ano de 1980, ainda que Gatti seguisse inabalável a ponto de resumir a estrela Maradona a “um gordinho que joga muito bem futebol”. Tomaria quatro gols de Dieguito em duelo com o Argentinos Jrs e o Boca, sem títulos domésticos desde 1976, não tardou a contratar El Diez. O empréstimo em dólares colheu frutos em curtíssimo prazo, com Maradona liderando a campanha campeã do Metropolitano de 1981 – na qual Gatti, por outro lado, foi nome relativamente ausente após lesionar-se ainda na segunda rodada. Carlos Pantera Rodríguez foi o goleiro titular na maior parte. Gatti voltou a campo já na 30ª rodada, após quatro jogos seguidos sem vitória do Boca, mas pôde ser decisivo.

No duelo contra o Estudiantes, El Loco não só roubou a bola do adversário Patricio Hernández como a carregou até o meio-campo, driblando outro adversário no caminho para então lançar uma assistência para Hugo Perotti marcar o único gol. A 32ª rodada, que era a antepenúltima, rendeu o duelo direto com a surpreendente Ferro Carril Oeste, um ponto abaixo. Novamente, foi de Perotti o único gol da tarde, a dez minutos do fim, ofuscando outra grande exibição de Gatti. Com a partida ainda em 0-0, o goleiro ficou no mano-a-mano com Miguel Juárez, que poderia ter silenciado La Bombonera. El Loco conseguiu evitar o gol e permaneceu para os dois jogos finais. O título veio, mas não foi mantido no Nacional de 1981. Logo os desmandos econômicos da ditadura resultaram na valorização do dólar em 240%, algo majorado com a derrota nas Malvinas. Não houve como segurar Maradona nem como evitar uma crise profunda, ainda que o Nacional de 1982 começasse com um 5-1 no River em pleno Monumental (na 5ª rodada), até hoje a maior goleada do Boca sobre o rival na casa adversária; Gatti era um dos poucos titulares presentes em um elenco que já se rebelava por atrasos nos salários.

Voador com as mãos, se aventurava como zagueiro e sua característica saída de área ajoelhando-se com os braços estendidos foi nomeada como “a de Deus”. Nem sempre dava certo – a da esquerda resultou em gol decisivo para o River faturar o Metropolitano 77

O time falhou em se classificar aos mata-matas do Nacional e da Libertadores e, ainda que chegasse a um 3º lugar no Metropolitano de 1982 e às oitavas-de-final do Nacional de 1983, teria como tônica campanhas cada vez piores: de um 7º lugar no Metropolitano de 1983 (onde Gatti superou Roberto Telch como recordista de jogos na elite argentina), caiu no Nacional de 1984 na enxuta fase de grupos como 3º de quatro times, vencendo só duas vezes e deixando escapar vitória até quando vencia por 3-0, no duelo com o Talleres. No pior ano da história do Boca, Gatti tanto sofreu a pior goleada da história xeneize, o 9-1 para o Barcelona (dois dias depois do aniversário do goleiro…) no Troféu Joan Gamper, como em seguida precisou ser improvisado como atacante pelo técnico brasileiro Dino Sani contra os mexicanos do Atlas em excursão pela América do Norte – tudo em turnês programadas às pressas apenas pela necessidade financeira. Gatti só atuaria mais duas vezes no segundo semestre de 1984, às voltas com greve interna do time profissional (não fosse os promedios, o Boca teria lutado para não cair: foi 16º de 19 times). A crise econômica resultou até no fechamento da Bombonera por falta de manutenção e à séria ameaça de extinção do clube. Nisso, El Loco só veio a retomar sequência de jogos a partir de maio de 1985, sem evitar a queda do Torneio Nacional.

O campeonato seguinte, inaugurando um calendário europeu, teve mais calmaria. O Boca pôde terminar em 5º e lograr uma epopeia na decisão da liguilla pre-Libertadores: após cair por 2-0 em casa para o Newell’s, superou-o de virada e com um a menos em Rosario por 4-1. Foi a última grande alegria de Gatti no Boca; na Libertadores, o time não fez por merecer a vaga, caindo na primeira fase para adiante ver o River, pela primeira vez, campeão. No campeonato de 1986-87, Gatti somou sua 700ª aparição na elite e o time esteve no páreo, liderando em dados momentos no embalo da chegada de César Menotti como técnico, mas chegou à rodada final já sem chances de título. Em nova final de liguilla, foi a vez de ficar no vice para o Independiente. Menotti saiu para o Atlético de Madrid e Roberto Saporiti, seu assistente na Copa de 1978, não solucionou: caiu já na 4ª rodada da temporada seguinte, após Gatti e colegas levarem de 6-0 do Racing. Juan Carlos Lorenzo foi chamado de volta, sem o mesmo êxito de outrora, caindo com o campeonato ainda em andamento para dar lugar a José Omar Pastoriza, de ciclos consagradores no Independiente.

O Boca ainda assim terminou só em 12º e foi eliminado cedo na primeira edição da Supercopa Libertadores. Mesmo com forma questionada, Gatti seguiu na titularidade para a temporada 1988-89, com o recorde de jogos pelo Boca no horizonte – em partidas oficiais, estava a só dez jogos dos 426 do ex-lateral Roberto Mouzo. Não deu: foi crucificado no gol da surpreendente derrota de 1-0 em casa para o Deportivo Armenio na estreia, após ser encoberto em uma de tantas saídas espalhafatosas, e terminou muito bem substituído por Carlos Navarro Montoya na sequência. O velho concorrente Amadeo Carrizo chegou a declarar: “Hugo buscou um pouco de publicidade comparando-se comigo, dizendo que era melhor do que eu. Eu, realmente, nunca teria me atrevido a algo assim. Mas de louco Hugo não tem nada. Só que o River é diferente do Boca. O River é mais exigente em tudo; no Boca lhe toleraram gols que jamais teriam aceito no River”. Em 2005, a resposta dada foi de que “para mim ele foi um grande, mas não tolerou que o aluno tenha superado o mestre”. Mas em 1988 a falha prevaleceu como gota d’água. Segundo Gatti, também pesou contra si a falta de apoio dos barrabravas de La 12 após declarar-se eleitor da Unión Cívica Radical, opositora histórica do peronismo.

Na saúde e na doença no Boca: erguendo uma Libertadores com o técnico Juan Carlos Lorenzo e improvisado como atacante em um amistoso caça-níquel do Boca no periclitante 1984

Ironia: aquele campeonato de 1988-89 teve como regulamento decisões por pênaltis se os jogos terminassem empatados e Gatti acabou não usado nessa especialidade. Parou nos 26 pênaltis defendidos, recorde exclusivo seu até Fillol iguala-lo justamente em sua última partida, no Apertura 1990 (“foi o goleiro mais importante que conhecia… sob as traves! Um grande solucionador dos seus próprios erros. Aqueles que entendem esse jogo sabem que é assim. Foi um grande, mas não deixou ensinamentos não fez escola, isso qualquer um sabe”, descreveria Gatti sobre o rival). A falta de espaço chegou a fazer El Loco cogitar uma proposta do River, mas não vislumbrou tanta seriedade assim na oferta e as luvas terminaram penduradas como profissão: ainda atuou pela seleção veterana da Argentina na Copa Pelé de 1991 e, pelo time principal do Boca, nos primeiros 27 minutos do 5-0 amistoso contra a Universidad Católica, comemorativo do título do Apertura 1998, em 3 de dezembro. Apenas para poder receber a merecida ovação ao ser substituído por Oscar Córdoba – a quem, em certa reportagem, ensinou que tomava meio litro de vinho antes de cada jogo para relaxar “o cagômetro” e liberar “o suingue”, servindo uma dose ao colombiano: “não banques o jogador europeu nem o fino comigo, que te conheço bem. Gostas da cana…”.

Buscando aproveitar melhor a família, El Loco não cogitou a carreira de técnico, evitando novos estresses, assim como abandonou o sonho de um dia presidir o Boca – inclusive, radicou-se bem longe do Riachuelo, em Madrid, passando a sofrer apenas pelo Real. Manteve, porém, a acidez, declarando em 2005 à El Gráfico que Carlos Menem foi o melhor presidente argentino e criticando severamente os goleiros da época, louvando o já quarentão sucessor Navarro Montoya como o de melhor momento (“mas não tem nem meu talento, nem meu físico, nem minha naturalidade. É o único que tem pasta, conhece o ofício, levanta a equipe, o público… o ruim são seus dentes. Eu lhe digo ‘Mono, ajeite essa dentadura’. Se tivesse o físico de Comizzo, ou seja, esse cabelo, esses dentes, seria muito melhor”): “Lux tem condições, mas prefiro Constanzo. Aposto na beleza, no lindo. Lhe falta um bom mestre. Aqui o problema é que treinar, qualquer um treina, mas ensinar, ninguém ensina. O único que poderia fazer isso é quem vos fala. Se eu pego Constanzo, o faço um goleiro de verdade. Pablo (Cavallero) nunca foi um bom goleiro e chegou à seleção! Mas, bah, Pato Abbondanzieri vai jogar o Mundial… dos goleiros que eu vi no Boca, é o último da fila, mas caiu na hora certa. E vai jogar um Mundial!”.

Gatti ainda disse ainda que, com 60 anos, aceitaria voltar a jogar se o Atlanta lhe chamasse de volta, desde que quinzenalmente: “opero a coluna e depois assino. Me seria muito mais fácil jogar nesse circo de hoje. Tudo o que agora está permitido fazia eu quando estava proibido. Hoje sou o melhor”. Também assegurou que seu filho Lucas Cassius Gatti não triunfou no Boca “por ser tão lindo” e, irreverências à parte (como ainda pintar as unhas dos pés) se impunha um limite: ainda achava um desrespeito goleiros que fazem gols. Mas talvez a grande heresia foi dizer que “para aqueles que não o viram Pelé foi (Michael) Jordan com os pés”, esclarecendo então que Maradona, na mesma metáfora, foi “Ginóbili“.

Ovacionado em sua despedida no Boca, já cinquentão em 1998, no amistoso festivo do Apertura 1998
https://twitter.com/NavarroMontoya/status/1163480209439514624

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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