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50 anos de um Rei Mago: Rubén Capria, maestro do Racing dos anos 90

Seu momento de glória: a tarde onde marcou três gols em um 6-4 do Racing sobre o líder Boca na Bombonera em 1995. Atrás dele, um ofuscado Maradona

Um exercício de imaginação sobre uma seleção argentina formada só com jogadores jamais aproveitados por ela poderia facilmente incluir Rubén Oscar Capria Labiste na escalação. Não, não se trata do zagueiro-artilheiro que passou pelo Atlético Mineiro em 2000. Este é Diego Capria, que na Argentina é mais conhecido apenas como irmão caçula do talentoso camisa 10 que deslumbrou especialmente no Racing – onde sua canhota precisa e grande habilidade nos tiros livres fizeram dele um digno sucessor do talentoso uruguaio Rubén Paz. Destacado também por Estudiantes, Chacarita, Newell’s e Peñarol, hoje, justamente no Dia de Reis, El Mago faz 50 anos.

Curiosamente, o apelido não teve nada a ver com magia, e sim apenas numa troca de brincadeiras com um amigo de apelido Magú. Ele cresceu na vida silvestre do povoado de General Belgrano (que o elegeria “esportista do século” em 2000), interior da província de Buenos Aires, não escondendo em longa entrevista em 2004 à El Gráfico ter sido um menino “assassino” que se alimentava dos pássaros que caçava ou carregando cordeiros em caminhões para ajudar o pai – na mesma entrevista, ele imaginou que seria veterinário se não virasse jogador. Foi descoberto aos 10 anos pelo Estudiantes, em um amistoso dos juvenis pincharratas com os aldeões da cidadezinha. “Ganhamos de 5-0 e meti os cinco”. Logo foi levado a La Plata, e o clube não tardaria a buscar também o irmão Diego.

A estreia no time adulto veio em 21 de maio de 1989, contra o Deportivo Armenio. “Eduardo Solari [pai de Santiago, ex-Real Madrid] me pôs aos 5 do segundo tempo no lugar de [Marino] Dalla Líbera. Joguei bem, mas os glúteos me explodiam pelo nervosismo”. Um primeiro gol veio já em 18 de março de 1990, sobre o Argentinos Jrs. Firmou-se na temporada 1990-91. O Estudiantes fez campanha morna, com um 7º lugar no Apertura e um 9º no Clausura, mas pôde encerrar um jejum de dez Clásicos Platenses sem vencer (sim), triunfando por 2-0 dentro da Bosque do Gimnasia LP. Capria esteve a ponto de ir ao Boca, inclusive: “estava quase feito, mas o Estudiantes quis pedir mais grana, porque eu ia à seleção sub-23, depois me lesionei e não joguei”.

Os irmãos Capria no Estudiantes, no Chacarita e no Racing de 1999 (onde Rubén é o primeiro agachado e Diego é o último em pé). No Brasil, só o zagueiro ficou mais conhecido

Ele recobrou a forma já na temporada 1992-93, onde marcou dez gols em campanhas mornas do Pincha: 7º no Apertura e 13º no Clausura. Mas no Apertura 1993 o time terminou simplesmente na lanterna, enquanto que em paralelo caiu para o Gimnasia no primeiro mata-mata da Copa Centenário, adiante vencida pelo rival. E não melhorou muito no Clausura 1994, em 16º lugar – Capria, em contrapartida, destacou-se solitariamente com sete gols que lhe deram a artilharia do elenco alvirrubro. Não foi o bastante: mesmo já contando no papel com os jovens Martín Palermo, Juan Sebastián Verón e José Luis Calderón (depois sócio em um bar com o camisa 10), o Estudiantes foi rebaixado. “Tive chances de ir embora, mas [Miguel Ángel] Russo e [Eduardo Luján] Manera me pediram que ficasse. Foi um desafio, e acertei. Foi uma das coisas mais dolorosas, mas o acesso foi a glória”.

O Estudiantes voltou de imediato à elite e Capria, um dos líderes da conquista da segunda divisão (anotou quinze gols, menos apenas que o centroavante Calderón), voltou a quase acertar com o Boca. Os auriazuis, porém, acabaram trazendo Maradona de volta e El Mago fechou com o Racing, agradando logo de cara: “sei que o Racing é o Vietnã, mas se temos que ir à guerra, vamos”, em alusão a um jejum nacional que já chegava a 29 anos. Ironia histórica: o Boca de Maradona e Caniggia era líder invicto até a antepenúltima rodada, sofrendo apenas seis gols até então. Já o Racing começou de menor a maior, em irregularidade que custou o cargo de Pedro Marchetta, o treinador que solicitara Capria. Sob o substituto, Miguel Ángel Brindisi, o time então embalou nas quatro rodadas finais. Na antepenúltima, no mesmo dia em que Mauricio Macri era eleito presidente auriazul, os donos da Bombonera levaram então outros seis gols de uma vez. Três deles foram de Capria, no jogo da sua vida, um maluco 6-4 que também encerrou jejum de vinte anos sem triunfos do Racing em duelos contra os xeneizes no campo rival.

Capria briu o placar logo aos três minutos, com uma bomba de sua canhota aproveitando um rebote para balançar o alto das redes. O fim do primeiro tempo se encerrou em vitória parcial por 3-2, mas com os visitantes tendo Sergio Zanetti (irmão de Javier) expulso e com Maradona descontando de pênalti aos 44. Mas então Capria ampliou aos 2 e aos 15 do segundo tempo, com um chute rasteiro de fora da área e um cabeceio certeiro. “Dava certo tudo o que tentava. Depois queriam que em todos os jogos eu fizesse três gols e jogasse assim. Me prejudicou um pouco”, refletiu naquela entrevista de 2004. Além daquele célebre hat trick e de assistências à dupla Claudio López e César Delgado, Capria fez outros sete gols no Apertura, incluindo um na rodada seguinte, um triunfo por 2-0 sobre o Gimnasia que manteve chances matemáticas de título para o Racing. Mas era preciso à Academia vencer seu jogo derradeiro e torcer para que o novo líder, o Vélez, perdesse justo para o rival racinguista, o Independiente – que ainda por cima estava de ressaca após vencer dias antes a Supercopa contra o Flamengo.

Representando o Racing no guia do Apertura 1995, junto de Francescoli (River), Marcelo Gómez (Vélez), Garnero (Independiente), o brasileiro Silas (San Lorenzo) e Caniggia (Boca)

A Academia sequer pôde fazer sua parte, goleada por 5-1 pelo Colón. Ainda assim, o time de Avellaneda não chegava tão alto no pódio desde o vice em 1972. No Clausura 1996, o time no início voltou a brigar pela ponta, mas entrou em uma espiral descendente após sofrer aos 46 do segundo tempo um empate do Estudiantes graças ao primeiro gol de goleiro registrado na elite argentina, de Carlos Bossio e deixar, já na 12ª rodada, uma vitória de 2-0 escapar contra o Huracán (sofrendo um gol em impedimento e outro no finalzinho, em falta desviada na barreira… há coisas que só acontecem com o Racing também). Com quatro gols do camisa 10, o clube terminou em 7º, mas sorriu ao fim: como o Vélez foi novamente campeão, Capria e colegas puderam vislumbrar uma vaga na Libertadores de 1997; em tempos de apenas duas vagas por país, em 22 de agosto de 1996 houve um duelo único no neutro Monumental entre os vices do Apertura e Clausura da temporada 1995-96.

O vice do Clausura fora o Gimnasia, em cuja campanha, curiosamente, não só também pôde ganhar de seis (a zero) do Boca na Bombonera como repetira depois o 6-0 sobre o próprio Racing. Mas no tira-teima, César Delgado marcou já aos cinco minutos de prorrogação o único gol, recolocando La Acadé em La Copa. Capria anotou sete gols ao longo da temporada 1996-97, onde o time de novo brigou pelo no Apertura, em 4º, antes de ser no 7º no Clausura. Na Libertadores, enfim, a torcida blanquiceleste sonhou, ao eliminar o então campeão River e depois o Peñarol (com gol do Mago) nos mata-matas, indo às semifinais trinta anos após a única conquista racinguista no torneio. Então veio o anticlímax, na eliminação para os peruanos do Sporting Cristal. Nesse embalo, Capria teve ofertas da Europa – “da Espanha, mas me haviam declarado intransferível. Teria gostado de ir a um clube importante, mas não fiz muita força para ir. Se fosse mais firme, talvez minha carreira houvesse sido outra. Nunca tive a devoção de grana a qualquer preço”.

Ele também já vinha tendo sua ausência na seleção questionada, apesar da dura concorrência: “tem que ter sorte no momento certo. É verdade que estavam El Burro (Ortega) e Gallardo, mas acreditava que com a quantidade de jogadores que Passarella chamou na minha posição, Albornoz [Gimnasia], Espina [Platense], Hugo Morales [Lanús], ia me chamar. Mereci a oportunidade. Uma das maiores tristezas da minha carreira é não ter vestido a camiseta argentina”. Ironia: para a Copa América de 1997, onde Passarella testou uma seleção caseira, o camisa 10 era do Racing. Mas era o goleiro Ignacio González, contemplado ao acaso com os algarismos por conta da numeração ter sido feita em ordem alfabética dos sobrenomes, fazendo o volante Christian Bassedas usar a camisa 1 enquanto José Luis Calderón, já no Independiente, vestia a 4.

No Racing de 1997: semifinalista da Libertadores, tirando River e Peñarol

Capria ainda atuou no caótico Apertura 1997, deixando três gols por um Racing 13º colocado. Foi então vendido sob emergência à Cruz Azul para a Academia arrecadar fundos suficiente para suspender sanções executórias. Sua única anedota boa no México foi ter encontrado em um jantar o “Senhor Barriga, do Chaves. Lhe disse: ‘maestro, sabe como lhe assistimos lá?’”; em seu novo clube, onde foi deslocado à ponta-esquerda, “não jogavam com meia-armador e não sei para que merda me levaram. Foi um negócio de uns empresários”. Um semestre depois, já estava de volta ao Racing para o Apertura 1998, com o passe comprado pelo próprio presidente racinguista, Daniel Lalín, em manobra arriscada para fazer o deficitário clube atrair investimentos em caso de título. Curiosamente, voltou a ser colega do irmão Diego Capria.

El Mago deixou cinco gols e La Academia até terminou em 3º, dando-se ao gosto de massacrar tanto o Independiente mesmo fora de casa que a vitória parcial de 2-0 em meia hora de Clásico de Avellaneda só foi interrompida com um blecaute suspeito. O jogo foi retomado dias depois e ficou no 3-1 barato, e só na campanha campeã da Superliga 2018-19 La Acadé pôde voltar a festejar três gols em dérbi na casa do Rojo. Mas o Racing esteve longe de disputar o título com o arrasador Boca de Carlos Bianchi e as medidas ambiciosas de Lalín se voltaram de vez contra as finanças do clube, que teve a quebra decretada logo antes da estreia no Clausura 1999. A mobilização da torcida impediu que a extinção fosse concretizada e Capria, diferentemente de outros astros trazidos por Lalín, até seguiu no time para o torneio – mas então uma lesão no tendão o tirou de quatorze jogos, só podendo anotar um único gol. Para o segundo semestre de 1999, dispensado pelo técnico Gustavo Costas, passou a vestir a camisa menos pesada do Chacarita, rumando ao Tricolor (recém-ascendido da segundona) junto com o irmão. “Ter voltado tão rápido do México foi um [erro]. Nesse momento, me entusiasmou voltar ao Racing com [o técnico Ángel] Cappa”.

Seu primeiro gol no Chaca foi justamente contra o Racing em Avellaneda, em um 2-2 pela 3ª rodada do Apertura. Capria marcou ótimos nove gols pelos funebreros naquela temporada 1999-2000, sendo essencial para o time de San Martín safar-se da dura briga que todo ascendido tem contra os promedios – ao fim do Clausura 2000, o Chacarita ficou uma posição acima da degola nessa tabela à parte. Para o Apertura 2000, o meia seguiu carreira no Lanús, deixando cinco gols, dois deles em um 6-0 em um dérbi sulista com o Los Andes. Porém, seu alto contrato foi visto como contraproducente pelos cartolas grenás. “Foi tudo muito confuso”, apontaria o meia naquela entrevista sobre a saída pelos fundos. Passou os próximos seis meses sem jogar, no que definiu como momento mais complicado da carreira. Em meados de 2001, ele chegou então a ser requisitado pelo clube do coração, o San Lorenzo, onde já vinha jogando o irmão Diego. “Mas eu já havia fechado com o Unión”, explicou.

Outras camisas no Rio da Prata: de rebaixado ao Unión em 2003 a campeão com o Newell’s em 2004 (com Ortega, ao fundo) e em seu último jogo: gol pelo Peñarol na casa do Danubio para forçar uma final em 2007

Enquanto o irmão se consagrava com o pênalti do título na Copa Mercosul, El Mago viveu uma montanha-russa no time de Santa Fe: o Tatengue precisou jogar a repescagem para não cair e inicialmente foi derrotado por 3-1 pelo Gimnasia de Concepción del Uruguay, mas safou-se com um 3-0 em casa no jogo da volta. Na temporada 2002-03, Capria anotou sete vezes, permitindo ao Unión acumular pontos contra San Lorenzo (3-1), o forte Gimnasia LP da época (2-1), Rosario Central (3-2, onde marcou dois), Chacarita e River (dois 1-1). Mas os alvirrubros não escaparam da queda. O momento feliz em 2003 foi em reencontro com o Racing, que, às portas do centenário, enfrentou justamente o Unión “e as pessoas me deram uma terrível ovação”, uma emoção que o fez minimizar não ter sido convidado pelos cartolas racinguistas para a festa oficial dos cem anos. Sondado pelo Internacional no início de 2003, Capria ainda passou seis meses no Barcelona de Guayaquil e outros seis na Universidad Católica antes de enfim consagrar-se novamente, agora no Newell’s.

“Já queria voltar à Argentina. Saiu essa possibilidade, e nem duvidei. Me encantou o clube, porque tem possibilidade de se meter entre os de cima”, afirmou naquela entrevista de 2004, concedida já em novembro. Sua aposta foi certeira: participou ativamente da conquista do Apertura, troféu recordado com carinho especial entre os leprosos, pois ali o Ñuls ultrapassou o rival Rosario Central em número de títulos argentinos. Já era mais um condutor junto da outra figura experiente na armação, Ariel Ortega, marcando só um gol (no 2-2 com o River fora de casa), mas sendo essencial. Já no Clausura 2005, a Lepra terminou só em 14º, mas Capria fez valer a lei do ex em um 3-3 com o Racing. Acertou seu retorno a Avellaneda para a temporada seguinte; a Academia, que terminara em 3º lugar, parecia saudável, mas despencaria para um 7º no Apertura 2005 e um 18º no Clausura 2006, a despeito dos sete gols do veterano ídolo. Ele ainda estendeu a carreira por mais um ano, no Peñarol. Desempenhou-se bem, em um time que liderou o Apertura até a rodada final, com direito a goleada de 4-1 no Superclásico com o Nacional.

O turno, porém, foi perdido em duelo direto com o Danubio. Foi a vez do Peñarol levar de 4-1, dentro do Centenário, com o jovem Edinson Cavani anotando o quarto gol da goleada que permitiu ao oponente terminar dois pontos à frente. Calhou que a temporada 2006-07 foi mágica para o adversário: no Clausura, onde o Peñarol bateu por 3-0 o Nacional, terminou empatado na liderança com o Danubio. A princípio, parecia que haveria troco, pois a co-liderança foi possibilitada pelo último ato da carreira de Capria: na casa dos franjeados, ele acertou uma característica falta com categoria aos 22 minutos, no único gol do confronto. O problema é que ele também acumulou o quinto cartão amarelo e terminou suspenso para o jogo extra que havia forçado entre os dois. Nele, os carboneros até venciam por 1-0 sem seu cérebro até os nove minutos finais, quando sofreram o empate antes de caírem nos pênaltis. O camisa 10 optou por dar a carreira por encerrada e só reapareceu nos gramados como técnico do Atlanta, já em 2014. Ex-jogador do rival Chacarita, não se deu bem, perdendo as cinco partidas onde foi tolerado na terceira divisão. Desde então, desempenha-se como comentarista em emissoras a cabo.

https://twitter.com/RacingClub/status/1214279509610057728

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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