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Nos 170 anos de Avellaneda, a despedida a um personagem: Pedro Marchetta

Avellaneda completou 170 anos nesse 7 de abril, a marcar também a despedida a um dos mais folclóricos nomes do futebol argentino: Jorge Pedro Marchetta, que soube trabalhar na dupla de gigantes daquela cidade, com direito a idas e vindas. “Um cara que até depois de morto te faz rir com suas ocorrências. Um personagem daqueles”, lamentou o historiador Esteban Bekerman, especialista em Vélez, onde El Negro também trabalhara, com um carisma que lhe blindava no Rosario Central e sobretudo em Córdoba, cidade onde radicou-se após ter trabalhado em todos os principais clubes locais. Inclusive, fora ao estádio assistir Talleres x Universidad Católica pela Libertadores 2022 antes de dormir pela última vez, a pouquíssimos dias do 80º aniversário, que completaria já no próximo dia 13.

Marchetta (pronunciado pelos argentinos como “Martchêta” e não “Marqueta”) também foi jogador, com algum talento e seus bons momentos. Em longa entrevista à El Gráfico em 2016, da qual tiraremos as aspas dessa nota, definiu-se como “um camisa 8 que corria como um escravo e tinha muita habilidade. Dos de hoje, seria como um D’Alessandro com perna direita”. Nela, destacou que era filho de um torcedor do Boca com uma do Independiente, mas terminou fazendo-se racinguista por influência de vizinhos. Ingressou nos juvenis do Racing aos dez anos e pôde se profissionalizar em 1962, quando La Acadé era detentora do título.

Mas ele também era daqueles talentos perdidos para a boemia e irresponsabilidade juvenis: “me expulsou Pipo Rossi [Néstor Rossi, glória do futebol argentino nos anos 40 e 50 e então treinador do clube]. Eu ia muito às corridas aos sábados. Meu pai, que faleceu jovem, tinha três cavalos que corriam a curta e aí peguei o gostinho e não larguei mais. Uma vez, rompi o ligamento do tornozelo e em vez de ir ver meus companheiros, ia ao hipódromo e um dia me agarrou Pipo e me disse: ‘aqui não jogas mais, tua mãe se mata por ti e torras a grana nas corridas. Vou trazer Daniel Bayo do Gimnasia e irás como parte do pagamento”.

Ele não guardaria rancor, reconhecendo o erro ainda antes de viver o outro lado da moeda, sobrando até para Antonio Mohamed, quando o atual técnico do Atlético Mineiro defendia o Independiente treinado por Marchetta: “expulsei o Turco do Independiente, porque me fez gestos quando o tirei de uma partida. O via pesado, porque tanto ele como [Gabriel] Amato viviam nas boates e dormiam no carro no estacionamento do clube, antes dos treinos. Um dia cheguei e lhes golpeei o vidro do carro, o susto que tomaram! Vários anos depois, me reconheceu: ‘somos uns filhos da puta nós, jogadores’. Amo o Turco com toda a minha vida, é muito simpático, uma grande pessoa”.

Sem emplacar no Gimnasia, já em 1966 ele descia mais um degrau, agora em um time de segunda divisão: o Los Andes, de sua cidade-natal, Lomas de Zamora. Por outro lado, como um raro jogador com algum estudo superior (em contabilidade), ele conseguiu prosperar economicamente em tempos menos rentáveis da carreira de jogador: “depois de algo tão forte como vivi no Racing, não fui o mesmo. Não havia chinelos nem toalhas nem nada. Voltei do Deportivo Quito do Equador com 29 anos, onde não se ganhava bom dinheiro, e já não havia planos que me seduzissem. Terminei jogando um regional no Eveready de Dolores, em 1975 ou 1976 disse basta e comecei a vender garrafas em Florencio Varela. Eu tinha grana antes do futebol, minha vantagem foi essa, e me meti no futebol porque me apaixonava”.

Foi inclusive pelos negócios alimentícios que ele iniciou sua relação com Córdoba, mais precisamente com a cidade de Embalse – atividade que o permitiu conhecer Maradona ainda na pré-adolescência de Dieguito, já um gênio: “tinha 13 anos e foi jogar os [Torneios] Evita em Embalse. Eu tinha os hotéis 2, 4 e 7, e vem um amigo e me diz: ‘venha vê-lo’. Ano 1973. Cheio de gente estava, mamita querida, o que era Diego? Disse ao dono da minha empresa: ‘você que tem muita grana, é preciso comprar esse garoto’. Lembro de ter ido falar com o pai, com Don Diego [o pai de Maradona tinha o mesmo nome], a lhe oferecer 8 milhões de pesos, mas quis seguir no Argentinos. Nesse campeonato, terminaram vices porque Diego errou um pênalti com os garotos de Pinto de Santiago del Estero. As fotos estão na El Gráfico“.

Os clubes mais expressivos do Marchetta jogador: Racing e Gimnasia

Também foi em 1973 que ele, como empresário, cumprimentou o presidente Perón para então não lavar a mão “por anos”, segundo contou também em 2016 ao jornal cordobês La Voz del Interior – por sinal, em evento presidencial para premiar os dois campeões daquele ano (Huracán no Torneio Metropolitano, Rosario Central no Torneio Nacional). Sua preferência pelo peronismo lhe causaria problemas com a ditadura, relatando naquela entrevista à El Gráfico que ficou preso por quase seis meses: “estive detido em Río Cuarto, logo me levaram a Buenos Aires, emagreci 18 quilos, estive incomunicável por um mês, levei alguns socos. Eu era militante e me perguntavam pelos guerrilheiros, mas não sabia nada”.

Em 2019, ao portal Infobae, acrescentou que testemunhara agressão física de subalterno à própria presidente Isabelita Perón antes do golpe que ela sofreria em 1976 e que Roberto Perfumo, antigo compadre de Racing, já o havia advertido mesmo ocupado com as finais da Libertadores daquele ano com o River. E foi outro antigo parceiro de Racing que lhe incentivou a voltar a trabalhar com futebol, Alfio Basile, que chegara a Córdoba para trabalhar em 1979 no Instituto. “Eu tinha investimentos de gastronomia em Córdoba, ganhava muito dinheiro. Mas Coco insistiu e fiz o curso. O curso de treinador é papo furado, viste? O verdadeiro curso fiz com Alfio sendo seu ajudante de campo, vendo-o nos treinos, escutando suas preleções. Comecei espiando rivais quando dirigiu o Racing de Córdoba, em 1980″.

A parceria começou com tudo. Enquanto o Racing original, de Avellaneda, já definhava, o cordobês surpreendia e chegava à final do Torneio Nacional de 1980, com direito a até eliminar o Independiente original nos mata-matas. O sucesso não impediu que virassem a casaca em 1981, quando Basile voltou ao Instituto e levou Marchetta consigo. Não era supersticioso como o amigo, “mas Coco me levava por esse caminho. Passamos pelo hotel Nogaró, onde concentrava o Estudiantes. Não sei por que, levava um saleiro, então atirei um pouco de sal pelo ônibus e ganhamos fácil. Na partida seguinte, nos calhava o San Lorenzo. ‘Trouxeste o sal?’, me perguntou o Coco. O San Lorenzo concentrava em Carlos Paz e Alfio armou uma operação para que fôssemos de noite e tive que meter pela porta de trás, subir ao refeitório e aí esvaziei dois quilos de sal: nas taças, no chão, nas mesas, por todos os lados. No outro dia, ganhamos de 6-2! Até que perdemos uma partida e se cortou. E então passou a ser: ‘traga açúcar!”.

Em 1982, o clube da dupla já era o Nacional, em tempos ainda fortes da dupla uruguaia de gigantes. “Na volta, me diz: ‘tens que arrancar carreira solo’. Eu estava muito tranquilo com meus negócios mas Coco insistiu e falou com dirigentes do Los Andes, que eram amigos meus. ‘Pedro já pode começar sozinho’, disse ao presidente. Eu morava ao lado do estádio, sempre fui do bairro. E comecei em 1983”.

Marchetta só conseguiria um título na carreira – e de segunda divisão, mas colecionou bons trabalhos (“quem me contratava sabia que lhe ia armar uma equipe, que lhe ia revelar dez jogadores da base e sem um peso, eu era um bombeiro que vinha com o hidrante”) que fizeram-lhe crer que só não chegou a técnico da seleção por não ter a melhor aparência, que lhe fazia inclusive negar ser alcóolatra: “falso, pergunte a Basile, que quando nos juntávamos, entre ele e Perfumo desciam todo o uísque enquanto eu tomava refrigerante. Mas com essa carinha, quem vai acreditar em mim? Se me veem tomando água, dirão: ‘veja como desce na vodka!'”.

Minuto de silêncio no treino de hoje do Los Andes por Marchetta, ex-jogador e ex-treinador do clube de Lomas de Zamora, sua cidade natal

A pele levemente mais morena para os embranquecidos padrões argentinos (daí o apelido de El Negro) de fato lhe faziam sentir-se discriminado, especialmente quando jovem. Mas a aparência não lhe seria entrave algum  com o sexo oposto: “sempre tive modelos, morenas ou loiras, mas sempre nota 8 para cima. É a lábia. Me deixe falar 10 minutos e pronto, liquido”. Ele passara por dois casamentos e à El Gráfico admitiu que sua reiterada infidelidade ruiu pelo menos o primeiro. Eis, enfim, ano a ano a trajetória do técnico Marchetta, complementada com seus comentários (e muitos causos) na entrevista à El Gráfico.

1983: seu Los Andes esteve muito próximo de voltar à primeira divisão. Na época, apenas o campeão tinha acesso garantido, com os melhores times abaixo na pontuação disputando em mata-mata de pós-temporada a segunda vaga na elite. As Milrayitas chegaram à final, mas não foram páreas para o Chacarita. Mas não foi tão simples: “no início, éramos um desastre. Me xingavam os amigos, os inimigos, eu tinha que tirar minha mãe do alambrado para que deixasse de xingar. No segundo turno, ganhamos todas as partidas e jogamos a final. Perdemos de 2-0 e empatamos em 3-3 na revanche, o árbitro nos cozinhou vivos. Mas foi uma grande campanha e aí fui ao Racing de Córdoba”.

1984: no Racing de Córdoba, trabalhou na última temporada memorável que o clube teve na primeira divisão. A equipe do bairro de Nueva Italia parou nas quartas-de-final do Nacional no primeiro semestre e terminaria em 5º no Metropolitano. Mas o causo mais marcante foi quando o elenco, que era  semiprofissional, apostou em si próprio (condição esta imposta por Marchetta) na loteria esportiva (a PRODE) com a caixinha de fim de ano para conseguir um complemento. O resultado desejado veio a partir de um gol de falta nos minutos finais contra o campeão Ferro Carril Oeste. “Mas houve outras cem apostas vencedores. Com o arrecadado só deu para pagar o jantar da festa”.

Marchetta seria técnico dos outros três grandes cordobeses e ainda de times locais menores, mas classificaria o Racing como o qual mais se identificou: “porque foi o clube que me deu chance como ajudante de Basile e com o qual fomos vice-campeões. E logo o dirigi em duas etapas”. A outra também seria memorável, mas por sobrevivência – chegaremos lá.

1985: Marchetta conseguiu o seu único título, tirando em alto estilo o Rosario Central da segunda divisão. Não que tenha começado fácil: “tínhamos um amistoso em San Pedro, 40 graus, e me vem [Jorge] Fossati com uma camisa de lã. ‘É o que temos’, me dizem. O testei à noite em um amistoso com um combinado de San Pedro, que era muito picante. Se armou um tumulto. Aí saiu Fossati do gol e começou: ‘quem quer brigar? Venham todos de uma vez’. À noite, disse ao vice-presidente: ‘faça um contrato com esse uruguaio’. Vi sua personalidade e a importância para o grupo. Jogou as 42 partidas o campeonato”. Na imagem que abre a matéria, é Fossati quem ergue a perna direita do mestre, na comemoração interna do título.

Com o acesso garantido antecipadamente, El Negro curiosamente alternou-se entre Central e Vélez ainda em 1985. O compadre Basile, que treinava os velezanos na primeira divisão, deixou-os para socorrer o Racing naqueles difíceis mata-matas pelo segundo acesso – o time de Avellaneda já havia perdido em 1984 a “final” com o Gimnasia. Marchetta então foi substitui-lo no bairro de Liniers. No sábado de 23 de novembro, cumpriu tabela com o Central e um 5-1 no Sarmiento e no domingo seguinte, treinou o Fortín em um 2-2 com o Gimnasia. Isso se repetiu nos dias 30 de novembro (Almirante Brown 2-1 Central) e 1º de dezembro (Deportivo Español 3-0 Vélez).

Sorrisos no Racing de Córdoba. E, à direita, euforia pela sobrevivência na primeira divisão em 1988

1986: o Vélez, que sob Basile havia sido vice-campeão em 1985 no Torneio Nacional, terminou a temporada 1985-86 apenas em 12º sob Marchetta, que classificou a mudança como o grande erro da carreira – “porque um ano depois, [o sucessor Ángel Tulio] Zof foi campeão da primeira divisão com os mesmos jogadores, mas nesse momento o Vélez me deu muita grana e Coco me disse que era um clube bárbaro”. No segundo semestre, ele voltou a Córdoba, agora para assumir o Talleres para a temporada 1986-87. Mas durou basicamente apenas no primeiro turno no bairro Jardín. E La T terminaria a temporada 1986-87 apenas em 11º. E, de fato, seus velhos pupilos de Central venceram aquele torneio, em raríssimo bicampeonato de segunda com primeira divisão.

1987: virou a casaca em Córdoba, assumindo o Belgrano na segunda divisão de 1986-87. “Eu fui do Talleres ao Belgrano, diretamente, um sacrilégio total. Estava descansando e me disseram que o Belgrano vinha me buscar. ‘Se vierem com 35 mil dólares, vou’, respondi, e no dia seguinte apareceram com os 35 mil…”. La B foi 3ª colocada na temporada regular e decidiu a final pelo segundo acesso com o Banfield, que levou a melhor, no que ele qualificou como dia mais triste da carreira: “ganhamos de 1-0 em Córdoba, lá íamos no 0-0, [o artilheiro Abel] Blasón se lesionou e cometi o grande erro de pôr um atacante, [Luis] Scatolaro, ao invés de um volante, El Gallego [Jorge] Vázquez. Nos ganharam de 2-0 e subiram eles. Perdi eu nesse dia. Ainda me dói”. Marchetta permaneceu em Córdoba, mas deixando o bairro de Alberdi para voltar ao de Nueva Italia, reassumindo o Racing para a primeira divisão de 1987-88.

1988: longe dos bons tempos, o Racing ficou à frente de apenas outras três equipes na temporada 1987-88 e, na tabela dos promedios, dividiu a vice-lanterna com o Unión. Marchetta ficou até o fim e La Academia Cordobesa levou a melhor no jogo-desempate com o time de Santa Fe. Mas no semestre seguinte El Negro rumou ao rival Instituto, onde trabalharia pela primeira vez como treinador – fechando o “pôquer” de clubes cordobeses.

1989: em seu quarto clube cordobês na carreira de treinador, voltou a brigar contra o rebaixamento. La Gloria foi lanterna nos gramados, mas na tabela de promedios salvou-se como última entre as equipes não-rebaixadas. Marchetta foi tolerado até a 29ª rodada e não se inibiu em pedir a falência do clube em 2014 a partir de 6 milhões de pesos devidos a ele pela equipe do bairro de Alta Córdoba – que só veio a lhe prestar uma nota de pesar já nas últimas horas de ontem. A passagem ficou mais recordada por um dos mais célebres causos de Marchetta: “tinha um goleiro que se chamava Gustavo Antoun, que insistia que lhe desse uma oportunidade. Depois de muito tempo, a teve por suspensão de Ramón Álvarez. Perdemos de 4-2 para o Deportivo Español, com quatro erros seus. Quando chegamos no vestiário, me disse: ‘Pedro, quero lhe dizer que não conte mais comigo porque me aposento’. Eu o olhei assombrado e lhe respondi: ‘por que não me disseste antes? Me colocava eu no gol e certeza que agarrava melhor que você’. Foram terríveis as gargalhadas. Não vi mais Antoun, que logo se formou em direito e hoje é juiz”.

O pobre Antoun já tinha essa história recordada na entrevista de 2016 à El Gráfico, mas a declaração acima constou no obituário de Marchetta no jornal cordobês La Voz del Interior. É que a frase “Por que não me disseste antes?” seria usada em uma cena do premiado filme Nove Rainhas (com Ricardo Darín, claro) de 2000: “eu treinava em Buenos Aires e cruzei com Gastón Pauls, um de seus protagonistas, que me disse que haviam usado no filme depois de terem me visto contar essa anedota em uma entrevista na TV”. Apesar da passagem ruim pelo Instituto, ele pôde voltar ao Racing – agora, o original, de Avellaneda, em filme similar ao de 1985: Basile deixara o clube (curiosamente, rumo ao Vélez) e Marchetta rumou ao time do coração para substituir Coco para a temporada 1989-90. Ainda em 1989, caiu no primeiro mata-mata da Supercopa, para um Boca que terminaria campeão.

1990: ele durou até a 24ª rodada da temporada 1989-90, onde La Academia terminaria em 8º. Creditou parte da crise à vida pessoal: “só te passo falar mal de uma equipe, do Racing de 1989, aí estive mal eu, acabava de me separar da minha primeira mulher, a que havia sido minha namorada desde os 14 anos. O futebol te faz conhecer muitas mulheres e, bem, a culpa foi absolutamente minha. Nesse momento, estive seis meses sem trabalhar e depois, por sorte, sempre tive equipes”. O divórcio também lhe fez iniciar terapia e seguia com a mesma psicóloga na altura da entrevista de 2016: “Ivonne Blaun, por favor a destaque. É uma mistura de Maradona, Messi e Pelé da psicologia. Me consertou a cabeça. A proibi de me dar alta, porque ante qualquer confusãozinha, recorro a ela. Na quarta sessão, a convidei para sair. ‘Você tem uma confusão bárbara em sua vida, tem duas mulheres e quer uma terceira?’, me disse. Um fenômeno, uma moça excepcional”.

À direita, com o Platense, onde se relançou após um divórcio e uma temporada péssima como técnico do Racing de Avellaneda

1991: queimado por um tempo após o retorno decepcionante no Racing e desgostoso por não ter sido convidado pela AFA para acompanhar o amigo Basile, agora novo técnico da seleção, recuperou-se no Platense. Os marrons ficaram apenas em 7º no Apertura 1991, mas a dois pontos do pódio. “Foi o clube que me voltou a me dar um impulso e a possibilidade de trabalhar depois de minha etapa ruim no Racing”, reconheceria à El Gráfico, embora nem tudo fossem flores na cidade de Vicente López: na mesma entrevista, mostrou cicatrizes no peito para destacar que tinha dois by pass. E que a um dera o nome de Pablo Erbín e a outro, de Gustavo Irusta, respectivamente um zagueiro e um goleiro daquele elenco que viviam lhe dando sustos…

1992: o forte Platense de Marchetta subiu um degrau, terminando o Clausura em 6º. O assumido coração racinguista não foi um empecilho para ele terminar contratado pelo Independiente. Por obra do mesmo Julio Grondona que lhe proibira na seleção de Basile: “me disse ele mesmo quando em pouco tempo cruzei com ele. ‘Não quis que viesses de auxiliar, os auxiliar ganham dois mangos, mas como demonstraste que és um bom cara, já vais ter notícias minhas’, me disse. Dois anos depois, o Independiente veio me buscar por sua recomendação. El Coco me antecipou. Me ligou desde a Arábia, onde estava com a seleção [na Copa das Confederações], e me contou: ‘Julio me disse que vão te ver do Independiente’. Eu não acreditava, porque se dizia que El Zurdo [Miguel Ángel] López já estava fechado, mas Don Julio sabia tudo”. Mais famoso torcedor do Platense, o cantor de tango Roberto Goyeneche ia aos treinos e “veio me pedir que não fosse embora e lhe disse que só ficava se me cantasse ‘Garúa’. Fomos ao bar e cantou. Fui um privilegiado”.

1993: vice do Clausura com o Independiente, engatou uma invencibilidade de 22 partidas (não estendida à Supercopa, onde caiu no primeiro duelo, contra o São Paulo) que manteve o time na briga também pelo Apertura. Mas a ligação com o rival e certo excesso de empates davam margens a uma falta de unanimidade: “me ultraxingavam. Dizem que a tribuna San Martín do Monumental é a mais difícil do mundo; eu te digo que a pior é a do Independiente. E isso que estivemos 22 jogos invictos, hein. Lembro de um homem em cadeira de rodas, que ia a todos os jogos e perdendo, empatando ou ganhando, me gritava: ‘o que você sabe fazer, negro torcedor do Racing?’. Um dia, depois de ganhar de 2-1 do San Lorenzo, cansei e respondi: ‘sabes o que sei fazer, paralítico da b… da tua mãe? Sei pular, veja, pule se você pode’, e fiquei pulando na frente dele. Que loucura, por Deus! Fiquei péssimo, mas desengasguei. E pensar que depois eu tive que andar em cadeiras de rodas…”.

1994: o Apertura 1993 foi interrompido na 15ª rodada, em dezembro, para as quatro rodadas pendentes serem retomadas apenas a partir de fevereiro de 1994. Tempo demais para Marchetta, que deixou-se seduzir por oferta do Rosario Central, pelo qual se apaixonara pelos dias em 1985: “o Central para mim é a namorada que nunca podias foder, e nesse dia nos deitamos. Houve oito mil pessoas em 27 de janeiro de 1994, quando me apresentei. Havia ficado uma relação espetacular com o pessoal da época do acesso. Para mim, a do Central é a melhor torcida do país, a mais fiel”. Sem ele, o Rojo terminou o Apertura 1993 a dois pontos do título, mas já com a espinha-dorsal pronta para, sob o treinador Miguel Ángel Brindisi, abocanhar em 1994 o Clausura (onde o Central de Marchetta fechou o pódio) e a Supercopa. Marchetta se dizia um nome perfeito para suceder Basile na seleção após a Copa 1994, “mas a discriminação nesse país é brava”. Os canallas decairiam sensivelmente nos torneios seguintes.

Na dupla de Avellaneda, teve desconfianças no Independiente por ser ex-Racing. E teve desconfianças na volta ao Racing (em 1995) por ter cometido a “traição”…

1995: mesmo após dois turnos de meio de tabela com o Central na temporada 1994-95, virou rara pessoa a ir e voltar em Avellaneda, recontratado pelo Racing a partir do Apertura. A equipe voltou a cair no primeiro mata-mata da Supercopa e Marchetta não empolgou, saindo na 14ª rodada do Apertura: “no Racing te xingam sempre, é por sistema. Eu catalogo a torcida do Racing de histérica”, atacaria na entrevista de 2016. Curiosamente, seu sucessor foi novamente Brindisi, com quem a equipe arrancou tarde demais, mas a ponto de ter chances de título até a rodada final. Preferia reagir com bom humor: “Miguel pegou o guardanapo e começou a comer. Eu fui duas vezes vice com o Rojo e ele ganhou o campeonato e a Supercopa. Com o Racing foi o mesmo: eu armei e ele terminou sendo vice. Um fenômeno, Miguelito! Espiava onde Marchetta ia, e aí ia ele depois”. Não foi o único caso no semestre, pois Zof, novamente seu sucessor no Central, ergueu a Copa Conmebol com os canallas

A saída antecipada do Racing, claro, esteve longe de ser tranquila. Marchetta relatou que até cinzeiro atirou no peito do presidente racinguista Daniel Lalín, e que usou como advogado informal o próprio governador da província de Buenos Aires, através de chamada telefônica com Lalín do lado, para garantir que receberia toda a multa rescisória de uma instituição à beira da quebra – que fazia Lalín gastar dinheiro do próprio bolso, sob recomendação do treinador: “sabes da grana que fiz Lalín ganhar? Um dia vem e me diz: ‘não podes mais escalar o Piojo [Claudio] López porque se não será preciso pagar uma cláusula de 600 mil dólares’. Lhe disse: ‘se o Racing não tem a grana, compre-o você’. Com o Chelo [Marcelo] Delgado, o mesmo: o Cruz Azul pediu 1,8 milhões de dólares. ‘Compre-o você mesmo, que com estes dois vais ganhar cinco milhões’, lhe disse. Errei: ganhou nova milhões. No-ve mi-lhões!”.

1996: cumpriu um ciclo em Córdoba. Já havia treinado o Belgrano, mas não na primeira divisão, onde lhe era o grande que faltava. Não evitou o rebaixamento celeste, mas permaneceu para a Primera B e viveu de tudo no segundo semestre. É que o Talleres não vencia o Clásico Cordobés já tinha 14 anos e, supersticioso, até usou camisa reserva (grená) no primeiro turno, em 29 de setembro. Os pupilos de Marchetta renovaram as gozações por mais umas semanas, pois venceram por 2-0. Mas, ainda em 16 de novembro de 1996, o rival conseguiu um troco com juros, goleando por 5-0 para encerrar o tabu e iniciar outro, agora favorável ao bairro Jardín.

1997: o Belgrano ganhou sua zona na intrincada segunda divisão de 1996-97, vencida no fim pelo Argentinos Jrs. Nos mata-matas pelo segundo acesso, parou nas semifinais, contra o futuro ascendido Gimnasia y Tiro de Salta. Para a temporada 1997-98, ele voltou ao Los Andes.

1998: seu Los Andes foi 3º na fase inicial da segunda divisão de 1997-98, mas terminou de fora dos mata-matas na sequência do torneio. Na temporada 1998-99, a equipe já viveria as últimas posições, embora o bom promedio desse segurança contra a degola. O trabalho rendeu um retorno ao Platense, que ao longo da década vinha desgringolando, começando a temporada 1998-99 já ameaçadíssimo de rebaixamento nos promedios.

1999: a passagem como bombeiro no Platense não evitou a queda. Mas causos não faltariam, ilustrando a crise institucional que se vivia no clube de Vicente López (que só voltaria à elite em 2021). Como sua ordem desesperada para que os comandados focassem em proteger a defesa para preservar uma rara vantagem, quando vinham atacando desenfreadamente: “parem garotos! Quem acham que está no arco rival? O tesoureiro do clube?”.

Comemora com o Belgrano a vitória em 1996 no clássico com um Talleres de grená, o último antes do rival encerrar um tabu de 14 anos no dérbi. Mas, ontem, apenas o Talleres (onde Marchetta trabalhara dez anos antes) emitiu pesar

2001: na segunda divisão, seu clube da vez, o Independiente Rivadavia, não foi bem. La Lepra de Mendoza terminou à frente de apenas quatro equipes.

2002: de volta ao Racing de Córdoba, não conseguiu reviver os velhos tempos. O bairro de Nueva Italia terminou rebaixado à terceira divisão – curiosamente, em empate no duelo direto com o Platense, igualmente condenado com o resultado. Marchetta precisou buscar ares longe dos pampas. O Deportivo Quito, onde chegara a jogar, acertara sua contratação. Ficou em 5º na liga equatoriana.

2003: novamente 5º colocado no Equador com o Deportivo Quito.

2004: uma nova passagem pelo Belgrano ficou recordada primeiramente pelo amistoso em que La B foi reforçada com o astro Ariel Ortega, ainda suspenso pela FIFA pelo imbróglio com o Fenerbahçe. Os celestes haviam feito um bom primeiro turno na temporada 2003-04, mas derraparam e terminaram de fora dos mata-matas pelo acesso. A lembrança mais marcante terminou sendo os xingamentos à torcida organizada, arruinando de vez seu clima no bairro de Alberdi, que até a publicação dessa matéria não lhe emitira qualquer nota de pesar. “Me equivoquei, generalizei tudo. Um dia se aproximaram do campo e me apertaram: ‘vamos queimar tua casa e vamos violar a tua mulher’, e eu levantei a lona e lhes disse: ‘cuidado com a casa, hein?’, os caras começaram a se cagar de rir”. Piada infame à parte, precisou voltar ao Equador, dessa vez para o Barcelona. Para variar, foi 5º.

2005: seguiu no Barcelona e o time de Guayaquil foi apenas 6º na liga equatoriana. Foi praticamente o seu último trabalho: em dezembro, para acompanhar o parto de um neto, voltou à Argentina e sentiu sintomas precoces de AVC, já em janeiro de 2006.

2006: notar cedo os sintomas lhe salvou a vida, mas não impediu a necessidade de oito meses de silenciosa recuperação até na capacidade de falar. Ainda sob o tratamento, “estive um mês no Junior, em Córdoba, mas não podia”. Tratava-se do General Paz Juniors, considerado o “quinto grande” cordobês e então na terceira divisão. Pediu demissão rapidamente. “Sabes o que me salvou? Que se reuniram Deus e o Diabo e começaram a discutir: ‘fique com você o Negro’, disse um. ‘Não, tome você’, atirou o outro… e ninguém quis pegar'”. Ele foi além: “sabiam poucas pessoas. Mas agora com estas 100 perguntas recupero o tempo perdido. É a cereja do bolo, já posso morrer tranquilo”.

Em 2017, o jornal La Voz reportou que ele levou todos os aplausos por um prêmio por sua trajetória em Córdoba, onde também teria trabalhado no clube Universitario, como mencionado na nota de pesar abaixo, do círculo de jornalistas esportivos da cidade. “Não sei se mereço esse prêmio, mas o recebo com alegria. Em Córdoba, vão me enterrar e alguns vão me xingar” foi o agradecimento com o humor típico de Marchetta.

Em 2006, no seu curto passo pelo General Paz Juniors, na terceira divisão: seu quinto clube cordobês

https://twitter.com/CPDCBA/status/1512107611507900423

https://twitter.com/RosarioCentral/status/1512081733155377153

https://twitter.com/caplatense/status/1512090671544426497

https://twitter.com/CATalleresdecba/status/1512121545057095680

https://twitter.com/InstitutoACC/status/1512239119614693377

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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