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Campeão com qualquer camisa: 55 anos de Oscar Ruggeri, da Copa de 1986

“Ganhou com a seleção quando Maradona estava no melhor nível, o mesmo no Boca, e na Copa América estavam Caniggia e Batistuta. No Real Madrid esteve rodeado de notáveis jogadores, igual no River. Ganhou por circunstâncias que se deram, isso não quer dizer que seja um grande jogador nem o caudilho que todo mundo pensa que era”  – Chilavert, José Luis (2007);
“[Briguei com ele] porque quis ser o exemplo, e de nenhuma maneira Ruggeri é exemplo. (…) É um traidor. Conheço bem Ruggeri” – Maradona, Diego Armando (2008);
“Ele disse que ganhou tudo, e eu digo que conseguiu porque integrava a equipe no River e na seleção, sozinho não obteve nada” – Bochini, Ricardo (2009);
“Que morra ali de sede. É o mais malvado que conheci na vida” – Sanfilippo, José (2015);

As frases acima depõem contra o título da matéria e duvidam até do caráter de Oscar Alfredo Ruggeri. Fato é que esse líbero nada virtuoso foi um dos mais pé-quentes jogadores argentinos. De grande ascendência moral sobre colegas e física nos oponentes (foi o jogador mais avermelhado da Argentina, cinco vezes), foi um ganhador em todas as esferas possíveis (nacionais, continentais e mundiais por clubes, mundial e continental por seleção…) pelas mais diversas camisas. El Cabezón é justamente quem a Argentina mais convocou de clubes diferentes, oito; o único a servi-la pelos três grandes de Buenos Aires, e o único também campeão nos três; único campeão titular da Albiceleste na Copa do Mundo e na Copa América; além de, como técnico, lançar Sergio Agüero.

De personalidade forte, não à toa esse rosarino criado na cordobesa Corral de Bustos cavou titularidade no Boca assim que profissionalizou-se, pouco depois dos 18 anos, em 8 de junho de 1980 (um 3-0 no Newell’s), após só um ano nos juvenis. Era uma promessa feita ao ídolo: o Boca havia ido jogar em Corral nos anos 70 e, com ingressos esgotados, Ruggeri se infiltrou como vendedor sem nada vender só para assistir. O ídolo era o beque Roberto Mouzo, ainda o recordista de jogos pelo clube. Prometeu-lhe que um dia jogaria no lugar dele, recebeu em troca uma foto autografada com o telefone do jogador, que não acreditou ao, anos mais tarde, ainda no Boca, rever o presente do novo colega.

O Boca era o clube do coração, apesar de um pai e um irmão torcedores do Independiente (o pai, também apaixonado por automobilismo, escolheu o nome em homenagem ao célebre piloto Oscar Alfredo Gálvez); a mãe, do San Lorenzo; e outro irmão, do Racing. Ambiente propício para um futuro jogador desinibido em virar a casaca. Nos auriazuis, começou na entressafra do time supercampeão internacional de 1977-78. Estava sob empréstimo do Corralense, que no fim de 2010 rebatizou seu estádio com o nome de sua maior revelação. Ruggeri agradou (os auriazuis terminaram só em 7º, mas com a melhor campanha do segundo turno) e o Boca exerceu a opção de compra, que financiou o azulejamento da piscina do Corralense. Mal acostumada, a torcida xeneize só voltou a gritar título em 1981, com o reforço de Maradona para o Metropolitano: falamos neste outro Especial.

Sem cerimônias contra o belga Jan Ceulemans em 1986. Desengasgando contra o Brasil em 1990 (nunca o tinha derrotado). E veterano em 1994

Só que o astro, contratado em dólar, também ajudou a derrubar financeiramente o clube conforme a moeda ianque se valorizava em 240% diante dos desmandos econômicos da ditadura. O Boca só voltaria a ser campeão nacional onze anos depois, seu pior jejum. Ruggeri, embora deixado de fora do mundial sub-20 de 1981 (sua primeira grande decepção), era justamente um dos oásis da má fase coletiva: ela não o impedia de deixar seu gol em um 5-1 de virada sobre o River em pleno Monumental em 1982 (até hoje a pior goleada millonaria em casa no Superclásico), empatando parcialmente o duelo, nem de estrear pela seleção em 1983 logo na primeira partida do ciclo do técnico Carlos Bilardo.

Ídolo, o zagueiro seguia na seleção em 1984, apogeu da crise boquense, com direito a vencer só a partir da décima rodada, fechar a Bombonera e sofrer a pior goleada da história – um 9-1 para o Barcelona em amistoso no Camp Nou, para o qual Ruggeri ausentou-se exatamente por estar ocupado com a seleção (veja). O outro jogador bostero aproveitado pela Argentina era o atacante Ricardo Gareca, igualmente querido pela massa. Sentimento convertido em ódio na virada para 1985: descontentes com a pindaíba, a dupla forçou uma greve que terminou em troca-troca com o arquirrival.

Ruggeri e Gareca passaram ao River, que cedeu Julio Olarticoechea e Carlos Tapia. Só Gareca não iria à Copa de 1986. O líbero comentou em 2003: “o torcedor morre quando viras profissional, passas a ser torcedor até a morte da camisa que defendes”. Chegou a ser agredido no primeiro reencontro contra o ex-clube, em pancada icônica do ex-colega Roberto Passucci (“agora pareço ser o assassino e Ruggeri, a pobre vítima. Não é bem assim”, defendeu-se o adversário), convertido em herói e que inspiraria até um site de investigação histórica do Boca. Mas a troca fez muito bem.

Naquele próprio dérbi, o defensor já terminou carregado pelos colegas: “eu gostava, precisava que me xingassem, se não pensava que haviam se esquecido de mim”. Já em 1986, o zagueiro terminou campeão de tudo. O River, que também vivia anos difíceis por ter igualmente usado dólar para trazer Mario Kempes em resposta à contratação de Maradona pelo Boca, encerrou de uma vez um jejum nacional de meia década juntamente com jejuns para além das fronteiras: ganhou sua primeira Libertadores e seu primeiro Mundial. Ruggeri foi titular em tudo e também na conquista da Copa do Mundo, no ano mais dourado dos torcedores millonarios.

Erguendo a Copa América de 1993. Contra o desafeto Chilavert. Quando foi capitão da seleção, estava no Vélez

Mas passou apuros. Ou melhor, seus pais, que escaparam por pouco de um incêndio criminoso na casa de Mar del Plata. “Fui encarar o Abuelo [líder da torcida La 12 na época] na sua feira em San Justo: lhe disse que o ia matar. Me disse: ‘te juro que não fui eu, mas fique tranquilo que o que te queimou a casa morreu num acidente'”, disparou. Em Núñez, fez temida dupla defensiva com o uruguaio Nelson Gutiérrez: “um verdadeiro assassino. Tinha que ser meio kamikase para passar entre Ruggeri e Gutiérrez”, resumiu o Cabezón sobre o dueto, chamado de “empresa de vigilância” no perfil de Ruggeri na El Gráfico que escolheu em 2010 os cem maiores ídolos do River.

O Millo não manteve o ímpeto nos anos seguintes, mas El Cabezón seguia firmemente na seleção e passou à Europa em 1988, ano em que fez seu único gol pelo River sobre o Boca, cabeceando para empatar em 2-2 na Bombonera. Após uma temporada individualmente excelente no Logroñés (“eu acreditava que Logroñés era o nome do empresário. Senhor Logroñés, dizia. Como ríamos depois!”), sendo eleito o melhor estrangeiro de La Liga na temporada 1988-89, Ruggeri parou no Real Madrid, que vivia a grande fase da Quinte del Buitre. O argentino foi titular no título espanhol de 1989-90, que garantiu um pentacampeonato aos merengues, igualando feito só alcançado em toda a Espanha pelo elenco madridista de Di Stéfano e Puskás. Permaneceu mais do que titular para a Copa do Mundo, onde foi um dos pilares da seleção atrapalhada com lesões e suspensões.

Tinha mais quatro anos de contrato no Bernabéu, mas uma lesão no púbis e a restrita cota de estrangeiros fizeram com que viesse ao Vélez em 1990. O Fortín não tinha a expressão atual, tendo só um título argentino, no distante 1968. Com o astro da seleção, terminou em 3º no Apertura 1990. Foi ainda 4º no Apertura 1991 e vice no Clausura 1992. Desempenho que, claro, o mantinha na seleção. Com a suspensão de um ano e meio de Maradona do futebol em 1991 por cocaína, o defensor virou o novo capitão da Argentina. Que na época, mesmo sem Dieguito, emendou recordistas 31 jogos invictos. Voltou a ganhar em 1991 a Copa América, que não vinha desde 1959.

O novo capitão acabou 1991 eleito o jogador do ano na América do Sul e o esportista do ano na Argentina – e mesmo uma volta ao Boca foi ventilada na época. Dos argentinos campeões do mundo, só ele e o goleiro Luis Islas (reserva no México) também venceram também a Copa América. Vieram ainda a Copa das Confederações de 1992 e nova Copa América em 1993, ainda o último troféu da seleção principal. Quando ergueu esse troféu, Ruggeri (recordista argentino de jogos no torneio, com 21) já havia passado por dois novos clubes. Saíra do Vélez ainda em 1992 acertado com o italiano Ancona, a exceção da carreira: virou bode expiatório depois de um 7-1 sofrido para a Fiorentina e, com menos de dez jogos na Serie A, foi vendido ao América do México, onde ficaria até o fim de 1993. Chegou a ser sondado pelo Internacional.

As outras camisas argentinas de Ruggeri: na final da Copa Conmebol de 1997 pelo Lanús e como técnico lançando Sergio Agüero, de 15 anos, no time adulto do Independiente

Mas acertou com o San Lorenzo no início de 1994, seduzido em voltar a trabalhar com Héctor Veira (seu técnico no River e no Vélez). Como cuervo, foi à sua terceira Copa do Mundo, onde despediu-se da seleção como o então recordista de jogos pela Argentina, sendo o primeiro a beirar cem jogos nela (42, como capitão, e apenas em um saiu do banco, jogando 8441 minutos de 8970 possíveis). Se Ruggeri saiu do Vélez pouco antes do clube de Liniers quebrar seu longo tabu, pôde desfrutar da sensação na nova casa. O San Lorenzo não era campeão desde 1974, jejum menor mas muito mais difícil de suportar para quem tem porte gigante. Se a pendência não foi resolvida de imediato, com o vice no Apertura 1994, caiu no ano seguinte, de forma emocionante conforme contamos neste Especial.

Com grande vigor para os 33 anos, compensando a perda da velocidade com melhor senso de colocação, jogou 17 das 19 rodadas, ainda que quase tenha posto tudo a perder com um quase gol contra na penúltima. Foi o Ciclón o clube com o qual mais se identificou, talvez. Foi até páreo duro para o River campeão da Libertadores de 1996: um cabeceio de Ruggeri no finzinho passou perto de virar o jogo no Monumental e forçar prorrogação nas quartas. O zagueiro teria ainda duas passagens nos azulgranas como treinador. Saiu do clube pela primeira vez em 1997, ano em que pendurou as chuteiras desgastado após uma greve, mas não sem antes experimentar uma nova camisa. Foi a do Lanús, único time que ele não representou na seleção. Passou um semestre no Granate. Chegou à final da Copa Conmebol. Mas aposentou-se marcado pela polêmica derrota em casa para o Atlético Mineiro.

O Galo goleou por 5-1 em jogo marcado por briga generalizada deflagrada pelo experiente Ruggeri. Voltou ao San Lorenzo já em 1998, na nova carreira. Não decolou tanto como técnico. O jogador pé quente virou um treinador que viu seus sucessores no Sanloré terminaram imediatamente campeões: se Manuel Pellegrini venceu em 2001 mantendo uma base boa deixada pelo Cabezón, Ramón Díaz ganhou em 2007 recolhendo frangalhos de jogadores que haviam levado em casa de 7-1 do Boca e de 5-0 do River em 2006. A falta de títulos foi minorada com o olho clínico para promover jovens, promovendo o maestro Leandro Romagnoli (maior campeão do San Lorenzo) quando El Pipi tinha 17 anos e outros garotos do vitoriosíssimo biênio sanlorencista de 2001-02. Assim como Sergio Agüero em 2003 no Independiente, quando El Kun só tinha 15 anos.

Abaixo, as versões dele, apresentadas em 2003 nesta entrevista (de onde tiramos as outras aspas dele ao longo da nota), às acusações introdutórias:

“Se me cuspissem na cara, faria o mesmo. Pela primeira vez em 19 anos, fui com intenção de machucar” (a Chilavert, em quem deu um carrinho criminoso por trás em um Vélez 4-1 San Lorenzo);
“Somos os dois de caráter forte e, se dizem coisas que me afetam, não tenho porque calar-me, seja quem seja o que me ataca” (a Maradona, com quem teve problemas na devolução da faixa de capitão em 1993. Se reconciliariam a ponto de Maradona querê-lo na comissão técnica da seleção em 2009, algo negado por outro desafeto do líbero, Julio Grondona);
“Me ferrou quando disse que não se sentia campeão do mundo, porque ele não era parte do grupo. E me doeu mais ainda quando fui cobrar o prêmio pelo Mundial e ele já havia cobrado. Não te sentes campeão, mas para cobrar o prêmio és o primeiro em sentir-se campeão. Como é a história?” (a Bochini, cracaço mas reserva da Copa 1986);
“Me dá bronca que esteja cobrando uma aposentadoria por ter trabalhado três meses na função pública. Meu pai cobra 195 pesos e trabalhou 40 anos em cima de um caminhão” (a Sanfilippo, maior artilheiro do San Lorenzo, que aos 60 anos levou uma cotovelada nos bastidores de um programa de TV).

Pelo Real Madrid e pelo América do México, as camisas mais pesadas que vestiu no exterior

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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