Especiais

50 anos sem Bernabé Ferreyra, o superartilheiro que deu popularidade ao River

Revisão, ampliação e atualização de nota originalmente publicada no aniversário de 110 anos dele, em 12-02-2019, no que por sua vez era revisão desta nota de 2017

Em dezembro de 2011, o River celebrou os 25 anos de seu título mundial. A reunião dos campeões foi reportada no mês seguinte pela revista El Gráfico com esses dizeres: “1986 foi o ano mais importante da história do River”, algo lógico. Em seguida, sugeriu-se outros anos importantes: “1938 e a inauguração do Monumental”, “1975, que acabou a noite dos 18 anos e catapultou o clube a ser o maior campeão do futebol argentino”. O outro concorrente? “Poderia competir com 1932, o que viu como Bernabé Ferreyra chegava do Tigre e convertia o River em uma comovente manifestação popular que explodia estádios”. Por vezes erroneamente noticiado como uma contratação recordista a nível mundial, fato é que Bernabé rendeu cada centavo ao perdulário River: morto há 50 anos, é o único profissional com mais gols que jogos no campeonato argentino.

Contando o período amador, foram 232 gols em 228 jogos. Só pelo River, foram 187 em 185 na liga argentina, e 220 em 198 no geral. Se o próprio ano de 1938 foi sugerido em função da inauguração do Monumental, isso se deveria a Bernabé, segundo outro ídolo riverplatense parido pela cidade santafesina de Rufino: o mitológico goleiro Amadeo Carrizo, que em depoimento à mesma revista El Gráfico classificou aquele centroavante como o maior ídolo millonario: “revolucionou o futebol na década de 30. Se iam 40 mil pessoas ver o River, 39 mil iam para ver Bernabé, pelos golaços que metia a 30 ou 40 metros. E eu tenho o orgulho de ser do mesmo povoado que Bernabé”. Segundo Carrizo, foi com a renda dessas multidões que começaram a se interessar pelo Millo que o clube angariou viu demanda – e fundos – para erguer o Monumental, pois o estádio anterior ficara pequeno demais para tantos novos torcedores.

“O ídolo máximo, para mim, é Bernabé Ferreyra, porque transformou o River em um clube popular. E olhe que jogou cinco ou seis anos, nada mais, e eu, 21. Porém, eu não me considero que possa superar Bernabé em idolatria”, definiu Carrizo. Em uma outra edição da El Gráfico, que celebrou em 1959 os quarenta anos da revista, de fato o ano de 1932 é exaltado em especial em função do atacante. A descrição do apelo gerado foi sucinta: por Bernabé, estavam se interessando por futebol “até os que odeiam futebol”. É justo dizer que ele também foi o primeiro jogador cujo nome basta como referência (um feito de peso em cultura onde os jogadores são conhecidos por sobrenomes, diferentemente de no Brasil), assim como Diego virou sinônimo de Maradona, Amadeo para Carrizo ou Román para Riquelme. Daí o uso mais frequente de “Bernabé” em vez do comum sobrenome “Ferreyra”.

Marcado pelo pique imparável (logo viram que era preciso para-lo com carrinhos frontais, pois quem tentava alcança-lo pelos lados acabava superado na corrida) e pelas bombas (incompatíveis com um corpo magro, mas que também não costumava perder divididas), jogava um futebol simples: não era um driblador, só arriscando chutar quando julgava necessário, do contrário passava a bola; foi mesmo elogiado um dos mais antifominhas atacantes argentinos. Por outro lado, admitiria que potencializava seus mísseis ao fazer das bolas verdadeiras balas de canhão, com preparos prévios às partidas que incluíam um desinflar e imersão em água (era costume cada mandante ter sua própria bola). Vamos à sua história, enfim.

O Bernabé pré-River: em Rufino, BAP, Newell’s, Tigre (e Huracán e Vélez)

Nascido em 12 de fevereiro de 1909 como o menor dos seis filhos de Bernabé Ferreyra pai e de Dominica Bravo, deveria se chamar Gregorio, como desejava o avô, que tinha esse nome. Mas o pai “xará” preferiu o dele. Foi a grande herança deixada, pois o atacante não guardou maiores lembranças do progenitor, que perdeu aos 2 anos de idade. Seus pais foram na prática os irmãos mais velhos. Um deles, Paulino, o introduziu ao futebol e ao treinamento intenso dos chutes. As bombas acabariam virando a marca registrada de um atacante magro de pernas finas. E foi Paulino quem levou-o ao primeiro clube, o Jorge Newbery (nome do Santos Dumont argentino) de Rufino.

Entrou no time adulto aos 15 anos. Mostrou a que veio já na segunda partida, ao marcar quatro gols em um 6-1 no Palmira, clube que tinha vários jogadores da seleção provincial de Mendoza. Na temporada 1925-26, Bernabé conseguiu na liga municipal sua primeira artilharia: 24 gols em um campeonato que só tinha oito times. Na seguinte, conseguiu nova artilharia, agora com 28 gols, e também seu primeiro título. Chamou a atenção do Newell’s, então restrito à liga rosarina, na qual contabilizou três partidas pelo time adulto da Lepra em 1926. Ainda com 17 anos, passou o ano relegado à equipe B dos rojinegros, não se adaptando

Por BAP, Huracán, Vélez (que ainda não usava a listra V, e sim “a la Fluminense”) e Tigre

No amadorismo, tinha como profissão pintor de obras. Em 1927, foi trabalhar nessa função na ferrovia Buenos Aires al Pacífico, que tinha na cidade de Junín o seu próprio clube de futebol, por sinal um dos mais antigos da Argentina, fundado em 1898. Com o reforço, o BAP foi campeão juninense após onze anos. E Bernabé, o artilheiro com 29 gols. Em 1928, ele integrou uma seleção do interior para a série de amistosos de argentinos contra o Motherwell, clube de uma Escócia que ainda falava grosso no futebol; foi dele o gol de honra na derrota de 4-1 para os britânicos, que haviam derrotado por 3-0 a própria seleção principal e ainda bateriam por 1-0 o Peñarol. Na época, a associação argentina, apesar do nome, se resumia aos clubes da Grande Buenos Aires e La Plata.

O primeiro clube “central” a testar Bernabé foi o Talleres da cidade de Remedios de Escalada, onde atuava o goleiro Ángel Bosio, titular da seleção de 1930. Não foi aprovado e o destino puniria os alvirrubros, que embora futuramente revelassem Javier Zanetti ainda são os fundadores da liga profissional que estão há mais tempo ausentes da elite (desde 1938), vendo seu tradicional rival Lanús redirecionar as rixas para os duelos com o Banfield. Um certo Alberto Monge conseguiu então para o atacante testes no Tigre em 1929. Embora ressabiado com a reprovação no Talleres, Bernabé estreou marcando os quatro gols em um 4-0 amistoso com o El Porvenir. Seu ofício de pintor lhe rendia 7 pesos na ferrovia BAP. No “amadorismo marrom”, passou a receber “por fora” 200 pesos mensais dos rubroazuis. 

Fé no próprio taco não faltava: ainda anônimo, foi convidado pelo presidente tigrense a assistir um Racing x Boca e foi indagado pelo cartola qual o melhor em campo. “Esse loirinho, mas tenho mais pique e chuto mais forte que ele”, respondeu, referindo-se ao xeneize Domingo Tarasconi, sem saber que se tratava do artilheiro das Olimpíadas de 1928. Àquela altura, Boca e Racing faziam justamente o duelo dos clubes argentinos com mais títulos e, naturalmente, mais popularidade nacional. Quando já era famoso, Bernabé confessaria que era na infância um torcedor racinguista, algo que ganharia tons irônicos, pois o que ele faria no River contribuiria bastante para o time de Avellaneda perder adeptos em favor da nova potência. Ainda antes de chegar ao River, um Bernabé com ainda quinze gols na liga argentina pôde estrear pela seleção, em duelo contra o Uruguai no feriado de 25 de maio de 1930.

Na ocasião, o garoto foi um desastre e terminou não convocado à primeira Copa do Mundo; depois se saberia que, escondendo de todos, havia na manhã daquele dia doado sangue para sua irmã. Com a Copa do Mundo em andamento, o Huracán se desfalcou de seu grande astro, Guillermo Stábile, que viria a ser o artilheiro do torneio. Uma das potências da época (tinha mais títulos que o rival San Lorenzo, o Independiente e o River), o Globo precisava de um substituto para a excursão que faria no Brasil. Bernabé foi emprestado. A turnê não foi das melhores, mas o atacante descreveria São Paulo como “uma maravilha”, embora o Rio de Janeiro fosse “ainda melhor”.

Ainda assim, Bernabé emendou uma viagem na outra. O Vélez também o requisitou para excursão realizada em todas as Américas, contratada sob a condição da presença de três jogadores da Copa do Mundo de 1930. A intenção era cumprir o requisito mediante os empréstimos de Francisco Varallo (Gimnasia e último sobrevivente daquele mundial, falecido em 2010, aos cem anos), Fernando Paternoster (Racing) e Manuel Ferreira (Estudiantes e capitão da seleção na Copa), mas este foi negado. Bernabé, de sobrenome parecido e da mesma posição, foi então “malandramente” levado em seu lugar. Para virar o astro principal: fez 38 gols em 25 partidas, onde os velezanos, frequentemente esgotados de viagens a navio ou trem sem que pudessem treinar adequadamente ou por três jogos em três dias seguidos, só perderam uma. Mas não foi uma viagem que terminou feliz: recebeu no Chile a notícia da morte de um irmão.

O ano já era 1931 e o primeiro campeonato argentino abertamente profissional estava em pleno andamento. Bernabé estreou na 14ª rodada, contra o Quilmes: 4-1, com quatro gols dele. Mas a partida que correu a boca de todos foi contra o gigante San Lorenzo, na 18ª: os azulgranas eram líderes e abriram 2-0 e mantinham esse placar faltando pouco mais de quinze minutos para o fim. Só que, quando faltavam nove, já perdiam: Ferreyra anotara os três da vitória de virada em um espaço de sete minutos (aos 29, 33 e 36 do segundo tempo) de um jogo que virou daqueles que todo mundo dizia ter assistido. “As pessoas ficaram loucas quando marquei o gol do empate, mas quando marquei o terceiro gol foi tal a injeção que me caíram lágrimas de alegria”, escreveu. Bernabé. A El Gráfico reportaria que seriam uns 10 mil espectadores em campo, mas o tempo fez as sedizentes testemunhas chegaram a dois milhões “sem contar os que morreram”, além de diminuir cada vez mais o espaço entre o primeiro e o último gol.

Volta olímpica no River, algo que começou a ser uma constante após Bernabé. À direita, preparando uma de suas famosas bombas

“Dizem 5, 4, 3 minutos. Seguindo assim, vamos chegar à conclusão de que em um mesmo chute fiz os três gols”, brincava o atacante, que começou a anotar em um livro cada suposto espectador que lhe abordava a respeito: segundo ele, a quantidade de nomes anotados daria para “encher três estádios do River”. Se foi possível o estádio do River lotar, muito se deveria a Bernabé. Uma das testemunhas seria o mitológico cartola riverplatense Antonio Vespucio Liberti, futuro nome oficial do Monumental. O Tigre terminaria o campeonato só em antepenúltimo, mas o matador do Matador (apelido do clube) fez 19 gols nas treze rodadas que disputou.

No River: transformando-o em um clube popular

O clube tinha só um título argentino, no longínquo 1920. As equipes mais populares eram, de longe, Boca e Racing, os clubes mais vitoriosos ativos na época. A seleção vice-campeã mundial em 1930 não tinha nenhum jogador riverplatense. Foi por contratar em 1931 uma das estrelas daquela campanha no Uruguai, Carlos Peucelle (que fez gol na final), do extinto Sportivo Buenos Aires, que o River foi apelidado de millonario. Algo reforçado com a compra de Bernabé: 35 mil pesos, dinheiro suficiente para alugar por um ano inteiro onze quartos do City Hotel, comprar onze carros ou para bancar 70 mil ingressos para assistir o próprio Bernabé, apurou na época a revista Caras y Caretas.

Com os anos, aquela transferência começou a ganhar versões incrementadas, segundo o historiador Esteban Bekerman. A ponto de a própria revista inglesa FourFourTwo noticiar em 2013 que aqueles 35 mil pesos equivaleriam a 23 mil libras, o que faria do argentino a contratação-recorde a nível mundial por dezessete anos, superando as 11 mil que o Arsenal pagara ao Bolton Wanderers por David Jack em 1928. Seria o primeiro recorde fora do Reino Unido e apenas em 2017 é que um novo recorde dobraria a marca anterior – quando as 200 mil libras que Neymar custou ao PSG superaram as 89 mil desembolsadas pelo Manchester United um ano antes por Paul Pogba. 

O recorde mundial de Bernabé Ferreyra também consta em listas do tipo em diferentes versões da Wikipédia, mas Bekerman apurou em 2020 que seria uma falácia germinada por uma nota patriótica da revista El Gráfico em 1981: “o câmbio real da época era 1 libra = 15 pesos”, segundo informação colhida já em 1934 na revista chilena La Cancha. A conta que assim equivaleria a 2.300 libras e não 23 mil – “na Inglaterra, já se pagava isso e mais por um jogador em 1914! O passe de Bernabé jamais foi recorde mundial como El Gráfico publicou em 1981 e muitos jornalistas repetiram logo”. 

Fato é que o tratamento estelar não se resumiu a isso a um montante certamente alto demais para os padrões econômicos sul-americanos: Ferreyra teve o direito de continuar morando em Rufino, indo a Buenos Aires às sextas para voltar aos domingos. Com o tempo, já era apanhado de avião – as aeronaves que vinham do Chile fariam escala em Rufino para traze-lo à capital argentina. E ele, que se pudesse jogaria descalço (como fazia em Rufino), tinha chuteiras sob medida, raridade na época. As meias também eram personalizadas: calçava os pés em meias comuns de seda, cortadas no tornozelo e remendadas com os meiões. Afinal, o River foi logo campeão argentino em 1932. Precisou de um jogo-extra com o Independiente, mas Bernabé não deu margem a dúvidas quanto a seu desempenho individual.

Foram 43 gols em 34 rodadas. Uma média altíssima que se torna abismal ao ver-se que o vice-artilheiro (Hugo Lamanna, que passaria pelo Vasco) fez um pouco acima da metade, 24 gols. Nos primeiros doze jogos, que também serviram para reestrear a icônica faixa diagonal vermelha (o clube a deixara de lado após o acesso em 1908, adotando a tradicional tricolor em listras verticais, mantida como camisa reserva, como na imagem abaixo), Bernabé deixou o seu, motivando uma medalha dourada do jornal Crítica ao primeiro goleiro que não fosse vazado por La Fiera (apelido criado pelo jornal, pois para os amigos ele sempre foi El Ñato, “O Narigudo”). Algo tão desejado que dois goleiros reclamaram a premiação, e com argumentos válidos.

Tirando o título do Boca em 1933 (com a camisa tricolor do River) e apreciando seu busto em 1961

Os EUA não eram a terra mais apaixonada por futebol, mas a turnê com o Vélez por lá parecia estar fresca na memória, pois até mesmo a imprensa dali repercutiu em 2 de julho de 1932 que Bernabé fora detido em Buenos Aires: o motivo foi que sua simples presença em um bar gerara tumulto, tamanha a algazarra de interessados em interagir com aquele fenômeno. À altura daquela notinha, doze rodadas haviam se passado e em todas houvera um golzinho de La Fiera. Pela 13ª rodada, falta de luz fez com que o 1-1 entre River e Huracán fosse interrompido aos 28 do segundo tempo. Bernabé não havia marcado, mas os minutos finais ainda seriam jogados em outro dia. Na 16ª, Néstor Sangiovanni, o goleiro do Independiente, comemorou duplamente: seu clube aplicou um 5-0 no River e o goleiro seria então premiado. Posteriormente, foram jogados os minutos finais contra o Huracán e o resultado não se alterou. O gol do River havia sido de Peucelle e o arqueiro huracanense Cándido De Nicola também exigiu o prêmio. O jornal então, salomonicamente, premiou ambos.

O 5-0 do Independiente (onde ficou famosa a entrega de Bernabé até o apito final, apesar da goleada), por sua vez, seria vingado duas vezes. No returno, a diferença foi devolvida, com o River fazendo 6-1 no Rojo, agora com Bernabé marcando duas vezes. Os dois clubes terminaram empatados. E no jogo extra, no campo neutro do San Lorenzo, El Mortero de Rufino abriu o marcador logo aos dez minutos, com uma de suas famosas bombas de longa distância (35 metros). O River venceria por 3-0, tendo em Bernabé “a pólvora” e, em Peucelle, “a arte”. Logo o Millo faria turnês pelo interior, cobrando um valor se Bernabé estivesse em campo. E outro se não jogasse. O presidente argentino Agustín P. Justo lhe visitou nos vestiários “porque quando leio os jornais, vejo que você sai todos os dias e eu não. E não entendo”.

Ferreyra não tinha falsa modéstia: “se eu não venho ao River, vocês todos seriam um desconhecidos”, falava em metade brincadeira e em metade seriamente em um encontro de ex-jogadores promovido pela revista El Gráfico, segundo nota que relembrava que já em 1933 ele exigira receber 20 mil pesos para seguir jogando: “eu ganhei o campeonato” seria sua soberba justificativa. De início, o clube não cedeu e ele voltou mesmo a Junín, até ser trazido de volta pessoalmente por Peucelle. Que não ia de guarda baixa: ele buscava trazer o artilheiro de volta para que se desculpasse publicamente com os colegas, e que depois o clube tratasse de negociar o aspecto financeiro. Conversaram em Junín a bordo de um carro, com o motorista sendo ordenado a dirigir devagar. Peucelle venceu o debate moral: “por que não ganhaste pelo Tigre? Então vá jogar no All Boys”. E Ferreyra venceu o econômico: o clube aceitou pagar-lhe o que queria.

Para 1933, o mote de millonarios foi novamente reforçado também por outro elemento: o River trouxe aquele outro Ferreira, o Manuel, assim como o citado goleiro Ángel Bosio. Mas o time não foi tão arrasador, ainda que desfrutasse de uma alegria: tirar o título do Boca. O Clásico Boquense (pois o River também nasceu no bairro de La Boca) ou Darsenero, como ainda era chamado o Superclásico, ocorreu na última rodada, sob muita polêmica: um jogador do River foi fraturado e, sem substituições, os Ferrei(y)ra e colegas jogaram com um a menos. Mas a vitória veio do mesmo jeito. Manuel fez um e Bernabé, os outros dois no 3-1. Ironia: futuro campeão, o San Lorenzo fora goleado por 7-1 pelo Millo ainda na segunda rodada campanha, em revanche pessoal a Ferreyra: La Fiera não havia marcado contra os azulgranas nos dois turnos de 1932 e ali anotara quatro vezes.

Só que Bernabé, que não usava caneleiras, algodões nem era de reclamar das faltas, começou a ser caçado. Segundo contemporâneos, embora não pudesse ser resumido à potência de seu chute, era humano: primeiro carrasco do Brasil, um Manoel Seoane já veterano afirmava em 1934 que “não é um grande jogador, mas tem o valor formidável de seu chute a gol. Mas também é preciso dizer uma coisa: é uma idiotice querer imita-lo. É preciso coloca-lo entre um insider inteligente, como [Roberto] Cherro, e outro trabalhador, como [Antonio] Sastre, com dois pontas técnicos, como [Miguel Ángel] Lauri ou [Natalio] Perinetti. Essa é a linha que eu formaria para uma seleção. Ferreyra precisa de seu lado de homens capazes por si sós de atrair as defesas contrárias, porque se o marcarem muito podem anula-lo”. Em 1950, uma matéria da El Gráfico o descrevia assim: “não foi um artífice do futebol, mas sim um jogador espetacular. Prometia a emoção do golaço”.

Os gols não paravam de sair, mas nunca mais como em 1932, o único ano em que La Fiera terminou na artilharia do campeonato. O clube só voltou a ser campeão em 1936, ano que marcou a estreia oficial dos jovens Adolfo Pedernera e José Manuel Moreno, este bancado pelo próprio Bernabé. Moreno, na realidade, pudera jogar pelos adultos ainda em fevereiro de 1935, mas em uma série de amistosos pelo Brasil. Neles, Ferreyra anotou dois nos 4-2 sobre o Botafogo em São Januário, dois nos 3-1 sobre o Corinthians no Parque Antártica, onde também iniciou a virada de 2-1 para cima do Palestra, o futuro Palmeiras; contra os corintianos, chegou a contar que precisava desvencilhar até de dentadas, do marcador Jaú – qualificado como “antropófago” sob esse relato: “fui tirar a perna depois de chutar a gol, a senti agarrada, e vejo a boca do negro cravada na ponta da chuteira, estava me mordendo!”.

Em sua despedida do futebol, em 1939, e como discreto campeão na seleção em 1937

É de Pedernera a famosa anedota na qual até Carlos Gardel tietou o jogador, que retribuiu: “não, maestro, La Fiera é você quando canta”. A conquista foi ratificada na Copa Ricardo Aldao, um tira-teima prestigiado na época entre os campeões de Argentina e Uruguai para definir moralmente a melhor equipe do Rio da Prata: marcou duas vezes no 5-1 sobre o cascudo Peñarol em pleno Centenário, em jogo único travado já em 20 de março de 1937 – Pedernera fez outros dois e Peucelle fechou o placar. Em 1937, veio novo título argentino, no primeiro bicampeonato do Millo – e novas ratificações: em janeiro de 1938, foi retomada a antiga Copa Ibarguren, antigo tira-teima entre o campeão “argentino” e o campeão da liga rosarina, e Bernabé tratou no dia 8 de marcar três vezes nos 5-0 sobre o Rosario Central (que somente em 1939 seria admitido, junto do vizinho Newell’s, na liga argentina), no estádio do San Lorenzo. Uma semana depois, também naquele gramado, foi a vez da Copa Aldao: novamente, o Peñarol levou de cinco (5-2, no caso) e, novamente, com dois gols de Bernabé. 

Ainda assim, Moreno já fazia mais gols que o amigo, ainda bastante útil para além da bola na rede: “sua valentia e seus canhões obrigavam que os rivais redobrassem o cuidado. Nos fazia mas fácil jogar”. Parte da queda nos números se devia a um recuo gradual do artilheiro no gramado; tantas lesões o faziam aumentar os gols de longa distância, para evitar marcações mais férreas, além de armar jogo aos colegas. Um deles, lançado naquele mesmo ano, foi Ángel Labruna, também bancado por Bernabé, em amistoso em Rufino contra o Jorge Newbery – Labruna, posteriormente, orgulharia-se de herdar dele aqueles chuteiras sob medida que outrora calçavam La Fiera. Já um goleador notável como Luis María Rongo não teve a mesma sorte, pois também era centroavante.

A média de gols de Rongo conseguia ser ainda maior que a de Ferreyra, mas foi liberado para brilhar no Fluminense, onde foi bicampeão estadual com mais de um gol por jogo também: saiba mais. Por ter Bernabé ainda em forma, o River não se esforçou tanto na disputa para contratar Arsenio Erico, futuro maior artilheiro absoluto do campeonato argentino. Em 1938, foi inaugurado o Monumental, e Bernabé não deixou de fazer o seu gol na inauguração, o segundo da vitória por 3-1 no amistoso com o Peñarol. Mas, ironia, jogou poucas vezes no estádio viabilizado graças ao sucesso do centroavante. Em 1939, só entrou em campo duas vezes no campeonato. Numa delas, no 5-0 sobre o Argentino de Quilmes, fez seus últimos dois gols. “Antes que o futebol me deixe, prefiro deixa-lo eu”, anunciou após a outra partida, um 2-2 com o Newell’s, em 28 de maio.

Não parou por completo, ainda presente em amistosos, em jogos da equipe B e depois em partidas da equipe de veteranos do River: por exemplo, deixou dois gols em um 4-3 em Santiago sobre o Colo-Colo em agosto daquele ano, defendendo um combinado River-Independiente, e há registro de um último gol pela equipe riverplatense principal em novembro, em 2-2 amistoso com o Huracán. Mas descansava de caçadas que também ganhavam folclore; certa vez, ao enfrentar o Tigre, seu ex-colega tigrense Aquiles Baglieto não vinha tendo dó e uma hora o atacante não aguentou mais: “velho, todas em mim? Veja Peucelle, as pernas gordinhas que tem, por que não dá umas nele?”. Ficou famoso também um relato contra um beque que lhe lenhava sem só embora carregasse no pescoço uma medalha de Nossa Senhora de Luján: “ao menos tire a medalhinha na hora de bater”, desabafou o astro. No ano seguinte à sua morte, o Huracán foi campeão e a revista El Gráfico relembrou de Ferreyra ao elogiar o atacante huracanense Roque Avallay, relembrando que “Bernabé tinha direito a entrar na cancha com um revólver para defender-se dos que o golpeiam”.

Redator de longa data da própria El Gráfico, Osvaldo Ardizzone juraria que o fenômeno popular em torno de Bernabé só teria paralelo com o de Maradona. Quando pendurou as chuteiras, El Ñato era: o maior artilheiro do campeonato argentino em números absolutos (ainda é em números relativos); o maior artilheiro do River; e o maior artilheiro do Superclásico – duelo que marcou a única expulsão que se tem registro dele, por troca de agressões com um marcador que alardeava tira-lo de maca de campo. Os dois terminaram na delegacia e o atacante foi humilde: “veja, comissário, a culpa foi minha, solte Martínez”, segundo relato do adversário Ernesto Lazzatti.

E na seleção?

O que sobrou de sucesso clubístico, porém, faltou na seleção. A estreia em más condições físicas pela Argentina em 1930 tirou-o da primeira Copa do Mundo. Depois, ele foi atrapalhado por fatores políticos: como a AFA não reconhecia a liga profissional, só se rendendo em 1935, apenas amadores foram à Copa de 1934 – os clubes profissionais não liberaram seus astros, temendo perdê-los de graça para o exterior por serem de um campeonato ainda não reconhecido pela FIFA. A cisão ainda em 1931 também fez com que ele, no auge da forma, ficasse anos sem defender o país.

Com dois sucessores: nos anos 40 com Alfredo Di Stéfano e nos anos 70 com Carlos Bianchi

Ainda assim, é surpreendente a falta de sucesso de Bernabé pela Albiceleste. Após a estreia, só jogou oficialmente outras três vezes: a segunda delas, na verdade, só teve sua oficialidade convalidada após a absorção da federação “oficial” pela liga profissional, pois era um combinado dos melhores jogadores desta, que sequer vestiam as listras alvicelestes – e sim uma camisa branca com golas verdes – naquele 14 de dezembro de 1933. O jogo marcou a primeira vitória argentina sobre o Uruguai dentro do Centenário, 1-0 com gol de Varallo. O único gol de Ferreyra pela seleção veio no compromisso seguinte, que não foi oficial: contra a seleção rosarina, em 2-2 em 20 de junho de 1935 no estádio do Independiente.

Depois daquela ocasião, só jogou mais duas  partidas, ambas na vitoriosa Copa América de 1937: titular contra o Chile e saindo do banco na finalíssima contra o Brasil. Segundo o livro Quién es Quién en la Selección Argentina 1902-2010, “as crônicas da época assinalam que Ferreyra não se sentia cômodo no conjunto nacional e que muitos não o consideravam útil para ele. ‘Não sabe ou não quer jogar internacionais’, chegou a escrever-se”. Em outros tempos do futebol, ele chegou a posar naturalmente com um cigarro na mão enquanto aguardava uma partida daquela Copa América. O tal Seoane que o cornetara em 1934 era agora o técnico da Albiceleste e cumpriu quase à risca a sua análise de anos antes: convocara os citados Cherro, Sastre e Lauri para o torneio. Bernabé não se sobressaiu. A Argentina, posteriormente, viria a se ausentar da Copa de 1938 também por politicagem.

É que a AFA estava desgostosa de perder a sede do evento para a França, e abriu mão de jogar as eliminatórias: elas se resumiriam a uma única partida, agendada em 29 de maio contra Cuba, já na francesa Bordeaux, e uma convocação chegou a ser anunciada. O técnico seria o húngaro Emérico Hirschl, ele próprio treinador do River, bastante representado na lista. Mas Bernabé, já decadente e sem nunca deslumbrar pela seleção, não figurava entre os chamados: os atacantes que teriam ido ao Mundial seriam os colegas Peucelle, Moreno e Pedernera, além de Alberto Zozaya (então o maior artilheiro do Estudiantes), Enrique García (ponta malabarista do Racing), Bernardo Gandulla, José Dacunto (ambos do Ferro Carril Oeste e logo aliciados pelo Vasco) e, curiosamente, o citado paraguaio Arsenio Erico.

Pós-futebol

O River ofereceu-lhe cargo de técnico ou algum trabalho nas inferiores, recusados: aceitou somente cuidar do campo. Descrito como homem de poucas palavras, mas bem humorado e bastante generoso, a ponto de permitir que usassem seu carro em Rufino (deixava-o fora de casa com a chave na ignição) e de não cobrar dinheiro emprestado, gastou a maior parte da fortuna que recebeu; seu obituário registrou lamentos dele no sentido de que teriam-lhe feito “um favor” se o prendessem ao fim de cada partida e o soltassem no domingo seguinte, pois “assim teria guardado algo do que ganhei”.

Em 1961, chegaria a declarar que “Deus é como um grande hospital que admite toda classe de germes”. O River se prontificou a quitar as dívidas pessoais do antigo craque, custeando tratamentos médicos dele e de sua esposa, Doña Juanita. (com quem teve Bernabé Daniel em 1936 e Carlos Alberto em 1940). Em uma de suas últimas aparições públicas, conheceu o único argentino ultrapassado por Messi em gols: um tal de Carlos Bianchi, cujo sucesso como técnico ofusca o fantástico goleador que foi; arrebentava na Argentina em 1971, penúltimo ano de vida de La Fiera.

Quando faleceu, em 22 de maio de 1972, Bernabé (enterrado em Rufino, mas velado no Monumental) já estava imortalizado não só no futebol, mas na música, homenageado em diversos tangos. Em um deles, “La Fiera”, o eu-lírico entoa que “garotos, tenham cuidado/que se aproxima La Fiera/glória a ti, campeão/de potente patada/que já ficou gravada/pela tua supercondição/O futebol de tua nação/te consagrou, muito sincero/o terror dos goleiros/pelo teu soberbo tapão/urra mil vezes, campeão/jogador extraordinário/és alma, és coração/do clube dos millonarios“.

https://twitter.com/MuseoRiver/status/1528511363747831809

https://twitter.com/MuseoRiver/status/1528443993255821313

 
 
 
 
 
 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

One thought on “50 anos sem Bernabé Ferreyra, o superartilheiro que deu popularidade ao River

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

dezoito + 2 =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.