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50 anos do início de um reinado: o do Independiente tetra da Libertadores

Originalmente publicado nos 45 anos da última etapa do tetra, em 29-06-2020, revisto e atualizado

Diabos Vermelhos é um apelido conhecido no futebol, aplicado ao Manchester United, ao Kaiserslautern, à seleção belga e desde os anos 20 ao Independiente – inicialmente como alcunha do quinteto ofensivo que, estrelado em especial pelo ponta Raimundo Orsi (vencedor da Copa de 1934 pela Itália, com gol na final), embalou os dois primeiros títulos argentinos do clube de Avellaneda. Nos anos 70, o simples sinônimo Rojo virou algo literal, com a equipe passando a trajar-se inteiramente de vermelho com frequência. Mas sua torcida teria outro codinome para se orgulhar, o genial trocadilho Rey de Copas. Desde os anos 70, a carta de baralho ganhou na Argentina outro sentido, designando uma dominância nunca vista antes ou depois no continente: um tetra seguido na Libertadores, com capítulo inicial encerrado há exatos 50 anos, na única volta olímpica dada em casa naquele ciclo.

Prólogo: “Graças ao Racing, vocês foram campeões várias vezes”

A frase acima foi proferida com humor em 2011 por Humberto Maschio, em entrevista à revista El Gráfico, quando indagado se ter treinado o Independiente lhe manchava a idolatria alcançada nos anos 50 e 60 como atacante do Racing. Maschio tratou de contextualizar: “sempre gozo os do Independiente. Lhes digo: vocês foram campeões com [Pedro] Dellacha e comigo, dois ídolos do Racing, e também lhes fizeram campeões [Vladislao] Cap e [Miguel Ángel] Brindisi, dois que jogaram no Racing. Mesma coisa com [José Omar] Pastoriza, um dos grandes ídolos do Rojo. Os velhotes do Independiente não gostavam de mim, havia algo de folclore, e me xingavam um pouco nos treinos. A torcida do Racing, de todo modo, me perdoa. Antes era outro espírito, outra coisa”.

Maschio prosseguiu: “fomos campeões em 1966 contra o Gimnasia e na rodada seguinte enfrentamos o Independiente. Cada jogador do Rojo nos esperou com uma guirlanda. A torcida deles nos aplaudia. Quando fomos campeões do mundo, fomos de ônibus desde  [o aeroporto de] Ezeiza ao estádio do Racing e nas pontes víamos as pessoas com bandeiras de outras equipes. O mesmo ocorreu quando chegamos ao Cilindro, que estava cheio com 100 mil pessoas. (…) Te conto uma anedota mais dos clássicos: almoçávamos no Racing e íamos caminhando até o campo deles. E não em grupo, um a um. Ninguém te dizia nada. E terminava o jogo e voltávamos caminhando também. As torcidas se mesclavam, se zombavam, mas não acontecia nada. Nessa confeitaria onde estamos hoje, nos anos 60 e 70, se juntavam as torcidas do Racing e do Independiente. E daqui iam ao campo: os do Racing por uma vereda e os do Rojo, pela outra. Não acontecia nada”.

Com efeito, três daqueles quatro títulos seguidos do Independiente na Libertadores vieram sob comando técnico de ex-jogadores que haviam sido ídolos do Racing. A série foi aberta em 1972 e encerrada em 1975 ambas sob o comando técnico do ex-zagueiro Pedro Dellacha, enquanto o ex-atacante Maschio ergueu a de 1973. E para classificar-se à Libertadores de 1972 foi preciso vencer o campeonato argentino de 1971. O Vélez tinha tudo para erguer o Metropolitano, mas na rodada final conseguiu perder em casa de virada para um instável Huracán – treinado por César Menotti, que havia tido uma passagem destacada como atacante do Racing em 1964 antes de ele próprio associar-se já como treinador muito mais ao Independiente. La V Azulada terminou ultrapassada pelo Independiente, então comandado pelo ex-defensor Vladislao Cap.

Pois bem: Cap, Dellacha e Maschio haviam sido todos colegas no Racing nos anos 50. Cap e Dellacha tornaram-se ídolos sobretudo pelo título argentino de 1958, ano em que serviram a seleção na Copa do Mundo. Maschio saíra no ano anterior para o futebol italiano, inclusive defendendo a Azzurra na Copa de 1962, virando lenda especialmente ao regressar como veterano para ser campeão argentino em 1966 – e, sobretudo, por figurar no time que em 1967 venceu a Libertadores e depois o primeiro Mundial do futebol argentino. Ao ganhar La Copa pelo Independiente em 1973, El Bocha tornou-se o primeiro vencedor do torneio como jogador e técnico. E um raríssimo campeão internacional pelos rivais; apenas Miguel Ángel Mori (Libertadores de 1964, 1965, 1967 e Mundial 1967) e Hugo Pérez (Supercopas de 1988 e 1994 e Recopa de 1995) conseguiram também.

Eram mesmo tempos de rivalidade mais sadia. Verdadeira alma do Independiente, o citado Pastoriza veio diretamente do Racing em 1966, trocado com o citado Mori, e defenderia os dois vizinhos também como treinador. Ele fez aniversário na véspera da conquista inicial do tetra, a única da qual participou antes de rumar ao Monaco. Nesse ano de 2022, seu ex-colega Francisco Sá relembrou ao La Nación: “naqueles anos, não existia a loucura de hoje, não havia tanta rivalidade fora do campo. Mais de uma vez, El Pato Pastoriza me dizia: ‘vamos tomar uns mates com a Tita’, e cruzávamos depois do treino ao campo do Racing e compartilhávamos uns mates com os garotos do Racing, tínhamos boa relação”. Tita era Tita Mattiussi, histórica zeladora da pensão racinguista por décadas a fio e virtual matriarca de quem jogasse pelos alvicelestes.

Curiosidades das finais: como visitante em 1972, o Independiente usou um calção bicolor alvinegro. E em 1975 a camisa dos jogadores de linha que acompanharam o goleiro José Pérez foi amarela

Pancho Sá, aliás, é o homem cuja imagem abre essa matéria – fotografada no estádio racinguista, vide a cor das cadeiras. Ela originalmente destacava ele ter participado de todo o tetra e ganharia mais força com o tempo, pois Sá viraria o homem que mais vezes levantou a Libertadores, ao ter vencido também as duas primeiras do Boca (no bi de 1977-1978). Seu hexa particular o fez superar um colega de elenco, pois o xerife Ricardo Pavoni foi penta (ainda um recorde por um único clube), somando sua conquista de 1965 com o Rojo às quatro do tetra. Ambos se juntariam também no fim da maior seca internacional do clube, pois formaram a dupla de técnicos interinos em uma das partidas contra o Defensor na Sul-Americana 2010, antes do clube contratar Antonio Mohamed; a taça anterior além das fronteiras datava de 1995 (a Supercopa, sobre o Flamengo), sob comando técnico de outra figura do tetra, o defensor Miguel Ángel López.

Também ao La Nación, em 2018, Pavoni destacou o seguinte: “quando íamos treinar, passávamos pela casa da Tita, no Racing, e ficávamos tomando mate com eles. Os garotos do Racing vinham ao nosso campo tomar mate conosco. Por aí nos matávamos a pontapés em uma partida, mas ao longo da semana nos juntávamos, havia amizade. Quando o Racing foi campeão do mundo, os recebemos com uma guirlanda de flores no campo de jogo. E quando fomos nós os campeões, em 1973, demos a volta olímpica no campo do Racing levantando a taça e a torcida nos aplaudia. A torcida do Racing nos aplaudia!”.

O La Nación também já teve, em 2017, o seguinte depoimento do herói do título mundial do Racing em 1967, Juan Carlos Cárdenas: “deixávamos os carros no estádio do Racing e íamos caminhando até o do Independiente, em meio a seus torcedores. Nos abraçavam e nos felicitavam. Hoje as pessoas acham que uma partida é a morte. Não posso entender. Nós fomos muito felizes com o futebol. Nos anos 70, quando o Independiente chegou a várias finais seguidas, eu ia ao estádio deles também, porque queria vê-los, era um momento histórico ter uma equipe argentina na final da Libertadores. E podia pagar meu ingresso, mas quando me viam não me deixavam, o pessoal do Independiente sempre se preocupava em me dar o melhor lugar que tinham disponível. Não estou dizendo nada raro, é o mais normal do mundo”.

Outra recíproca: os dois técnicos campeões internacionais pelo Racing eram ambos torcedores do rival na juventude – tanto Juan José Pizzuti (o homem das taças de 1966-67) como Alfio Basile (o da Supercopa 1988). Nada que importe tanto como as taças em si. Clicando-se sobre os anos, é possível acessar matérias que o Futebol Portenho já publicou separadamente a cada capítulo do tetra. Mas vale compila-los abaixo.

1972

O inesperado título do Torneio Metropolitano de 1971 a rigor não bastou para uma classificação direta à Libertadores. Ao dividir em 1967 o calendário entre os Torneios Metropolitano e Nacional, a AFA estabeleceu que as duas vagas do país na Libertadores seriam destinadas ao campeão e ao vice do Nacional – fora como vice nacional de 1967 e não como campeão metropolitano do mesmo ano que o Estudiantes classificara-se à sua vitoriosa edição de 1968. O próprio Independiente havia sido o campeão metropolitano em 1970, por sinal graças a uma virada em pleno Clásico de Avellaneda na casa rival. Mas os times argentinos na Libertadores de 1971 foram Boca e Rosario Central, que fizeram a final do Nacional (além do Estudiantes, como detentor do título continental de 1970).

Para 1971, a AFA começou um relaxamento: as vagas seriam do campeão nacional e do vencedor de um tira-teima entre seu vice e o campeão do Metropolitano. Assim, o Independiente ainda precisou superar o San Lorenzo em uma espécie de pré-Libertadores e assim foi feito em jogo único em 29 de dezembro de 1971 no estádio neutro do Boca. Teve até ares de revanche, pois onze dias antes o próprio Sanloré eliminara o Rojo na semifinal do Nacional, na primeira disputa por pênaltis do futebol argentino. Pastoriza marcou o único gol para garantir o Rojo em La Copa. O técnico Cap, porém, foi requisitado pelo financeiramente atrativo futebol colombiano e foi então substituído por Dellacha.

Os onze da final de 1972 pelo lado campeão

Primeiro time argentino campeão e bicampeão da Libertadores, em 1964 e em 1965, o Independiente só conservava dois nomes daqueles tempos: o goleiro Miguel Ángel Santoro (presente nas duas taças) e o referido lateral uruguaio Ricardo Pavoni, reforço do time para 1965. O setor defensivo era completado com os citados Francisco Sá e Miguel Ánge López, além de Eduardo Commisso, Rubén Galván, Alejandro Semenewicz e Luis Garisto, em revezamento nas outras três vagas junto a Pavoni. À exceção do goleiro Santoro e de Garisto (ambos presentes em metade do ciclo, nas taças de 1972 e 1973), todos eles participariam de todo o tetra seguido.

Versátil, El Polaco Semenewicz também podia ser escalado no meio-campo, o que ocorreu sobretudo naquele primeiro título, onde fez uma trinca com Pastoriza e Miguel Ángel Raimondo. O ataque foi formado pelo trio Agustín Balbuena, Eduardo Maglioni e Hugo Saggioratto. Pontualmente, também foram usados Carlos Bulla, o italiano Dante Mírcoli, Enrique Cavoli e Manuel Magán (todos atacantes) e o meia Antonio Moreyra, sobretudo na primeira fase de grupos; dela, só o líder avançava, em regulamento muito mais duro que o atual.

A chave inicial do Rojo em 1972 era composta ainda pelo Rosario Central (o campeão nacional de 1971) e dois colombianos: Atlético Nacional, reforçado com os argentinos Oscar Calics (da seleção da Copa de 1966) na zaga e Raúl Navarro no gol; e Santa Fe, que atraíra dois iugoslavos para aquela liga financeiramente atrativa – o técnico Vladimir Popović, semifinalista da Copa de 1962 ainda como meia, e o goleiro Janko Sanković.

Os colombianos ainda assim não estiveram à altura, somando apenas uma vitória, no triunfo caseiro do Santa Fe sobre o Nacional, que empataram no outro confronto doméstico. O páreo, então, sobrou para os dois argentinos. Nisso, acabaram pesando as disputas diretas, com os de Avellaneda logrando um empate na partida inicial, no Gigante de Arroyito, e uma vitória na Doble Visera. Destaque aos dois gols do Pato Pastoriza, ambos em cobranças de falta com curvas perfeitas. Bastava até empatar na última rodada com o Atlético Nacional em casa para carimbar a presença nas semifinais, e conseguiu-se um 2-0 – restando inútil a vitória, pelo mesmo placar, dos rosarinos sobre o Santa Fe.

A fase seguinte era um triangular cujo líder avançava à final – essa fórmula do triangular-semifinal foi usada pela Libertadores até a edição de 1987. A única derrota do Independiente em 1972 viria nessa fase, onde encarou o Barcelona de Guayaquil, reforçado com o maior artilheiro da história da Libertadores, o equatoriano Alberto Spencer; e o São Paulo. A única derrota do Independiente na campanha viria aí, contra o São Paulo, na capital paulista, gol solitário de Toninho Guerreiro (um dos quatro artilheiros daquela Libertadores) no fim do jogo punido a estratégia retranqueira de Dellacha para aquela noite.

O Tricolor, porém, pecara diante do Barcelona de Guayaquil, contra quem empatou seus dois duelos. Os argentinos também empataram fora de casa contra os equatorianos, mas souberam vencê-los em seus domínios – com algum escândalo, com os visitantes se retirando após a expulsão de Pedro León. Com isso, a derrota para o São Paulo, se revertida em Avellaneda, permitiria ao Rojo avançar à final e foi o que aconteceu, com um 2-0. El Mencho Balbuena se mostraria o maior carrasco do São Paulo na Libertadores desde ali: abriu o placar com um gol olímpico, onde Sérgio, o uruguaio Pablo Forlán e Saggioratto chegaram a disputar a bola no ar, sem que ela tocasse em ninguém antes de entrar. 

Maglioni e seus dois gols na final de 1972

Raimondo e Maglioni deixariam o campo lesionados, mas El Tano Mírcoli ampliaria o placar para garantir a festa pós-jogo que o elenco faria na pizzaria que Pastoriza administrava no bairro de La Boca (a “La Gata Alegría”), vizinho a Avellaneda. Já a final teve pela primeira vez um time peruano, o Universitario. Eram os anos dourados do futebol do Peru. Sua seleção portava-se na época como a força sul-americana alternativa ao trio Argentina-Brasil-Uruguai, papel que as gerações atuais acostumaram-se a ver no Chile: antes de vencer a Copa América de 1975, a Blanquirroja dera trabalho ao Brasil na Copa de 1970, para a qual fora após eliminar dentro da Bombonera a Argentina.

Como no cenário peruano os craques estavam espalhados em vez de, como no Uruguai e Paraguai, estarem concentrados em poucos times, porém, suas equipes não chegaram a ter grande sucesso internacional naquela época. Mas o Universitario conseguiu ser uma exceção, tendo dois dos artilheiros daquela Libertadores: Oswaldo Ramírez, autor dos gols que haviam eliminado a Argentina na Bombonera, e Percy Rojas (o outro goleador da edição também foi peruano – Teófilo Cubillas, do rival Alianza Lima). O outro único clube do país a chegar à final do torneio seria o Sporting Cristal, que perdeu em 1997 para o Cruzeiro.

O oponente dos argentinos em 1972, por sua vez, deixara para trás nas outras semifinais simplesmente a dupla uruguaia Nacional (detentor do título) e Peñarol, em um grupo equilibradíssimo em que todos terminaram com quatro pontos. La Crema terminou favorecida pelo melhor saldo de gols. Além da dupla artilheira Ramírez e Rojas, contava com outro nome importante, o zagueiro Héctor Chumpitaz. O técnico uruguaio Roberto Scarone acabaria sendo empregado também pela seleção de seu país. Do lado argentino, havia alguma honra em jogo, estando fresca as expulsões a rodo que haviam marcado um Boca x Sporting Cristal no ano anterior.

O Independiente utilizou praticamente o mesmo time nas duas contendas. Em Lima, ela ficou sem gols. Na Doble Visera, os titulares dos mandantes foram Santoro; Commisso, Sá, Garisto e Pavoni; Pastoriza, Raimondo e Semenewicz; Balbuena, Maglioni e um deslocado Saggioratto (originalmente, um armador). A única modificação em relação ao onze inicial que Dellacha escalara em Lima, uma semana antes, foi a entrada de Maglioni no lugar de Mírcoli. Maglioni havia sido poupado após estirar a coxa contra o São Paulo. Mírcoli era o artilheiro do time, com 4 gols, mas só entraria já no decorrer da segunda partida (no lugar de Saggioratto), quando Maglioni já demonstrava que o substituíra à altura.

Mesmo não sendo tecnicamente muito hábil, Maglioni sabia usar os dois pés para vazar as redes. E com cada pé ele fez os dois dos tricampeões naquela noite de 24 de maio de 1972, contra a formação Humberto Ballesteros (argentino ex-River), Eleazar Soria, Fernando Cuéllar, Héctor Chumpitaz, Julio Luna, Rubén Techera, Luis Cruzado, Hernán Castañeda, Juan Muñante, Percy Rojas e Oswaldo Ramírez. O primeiro veio logo aos 6 minutos do primeiro tempo, ao encher a canhota após receber passe de Pastoriza (em impedimento, de acordo com a imprensa peruana. Já os argentinos ressaltaram a assistência de calcanhar de Pastoriza) para bombardear a bola no canto direito.

Também aos 6 minutos, mas da segunda etapa, Pastoriza deu nova assistência a Maglioni, agora completada para o gol com a direita mesmo com o centroavante prensado por Cuéllar. O atacante terminou especialmente emocionado: “fiquei dez dias na cama, sem me mexer, para jogar a final”. Havia suplicado aos médicos para jogar, prometendo que faria gol e sairia. Cumpriu, sendo substituído por Manuel Magán. La U já vinha pressionando e continuou a fazê-lo, conseguindo botar algum fogo na partida ao descontar a onze minutos do final, em um chorado gol de Rojas em bate-rebate na pequena área – ele, por sinal, viria a ser um ídolo no próprio Independiente. Participou do último capítulo do tetracampeonato, em 1975 (marcando outra vez nas finais), ano em que venceu também com sua seleção, na referida Copa América.

A primeira volta olímpica do tetra foi a única realizada em casa. Ao lado, Pastoriza, campeão apenas daquela Libertadores como jogador (venceria a de 1984 como técnico) e que comemorou na véspera um aniversário, e o xerife Pavoni

Ao fim, ambos foram aplaudidos pelo fair play: “um agradecimento final para o Universitario e para o Independiente. Porque limparam a Copa Libertadores, que havia ficado manchada com os incidentes dos últimos tempos, com o uso e abuso da consigna feroz e selvagem do triunfo do mais forte a qualquer preço, com o uso e abuso da irritação e o ressentimento dos quem não queriam perder. O do Independiente e Universitario foi admirável. O do Independiente, através de toda a Copa, com atuações invariavelmente francas e honestas”, escreveu a revista El Gráfico.

Em setembro, o time não foi tão gentil contra o Ajax na disputa do Mundial Interclubes. Johan Cruijff saiu carregado da Dobla Visera, mas não como campeão e sim como lesionado, experiência que teria pesado junto de outros fatores para o craque decidir não voltar à Argentina para a Copa de 1978. Mesmo assim, os holandeses seguraram o 1-1 na Argentina antes de darem um troco categórico de 3-0 em Amsterdã. Nada que impedisse que Pedro Dellacha acertasse um contrato com o Celta de Vigo. E as conquistas seguintes já seriam todas em campo “neutro” entre aspas: “tínhamos toda a plateia contra”, destacaria Pavoni na entrevista de 2018 ao La Nación.

Ainda assim, Sá opinaria na contramão, no sentido de que a primeira conquista foi a mais difícil, pois “depois de ganhar a primeira, já vais com outro espírito. Sempre foi, é e será difícil ganhar La Copa. Antes, tinhas que jogar com as melhores equipes do continente, com o campeão e o vice, e tampouco havia muitas garantias quando jogavas de visitante, te faziam qualquer coisa. Agora jogam quatro ou cinco equipes por país, e pelo tanto não são rivais tão fortes, podes te reforçar no meio do torneio… e atenção: não sou desses velhos que pensam que o passado sempre foi melhor”.

1973

Dellacha foi substituído inicialmente por um homem da casa: Roberto Ferreiro fora o lateral do Independiente bi da Libertadores em 1964-65. O time não se recuperou do baque pelo terceiro vice no Mundial e fez uma campanha medíocre no Torneio Nacional de 1972, acomodado com a vaga automática que teria na Libertadores de 1973 como detentor do título continental. Mas o período sob El Pipo Ferreiro serviu para pinçar para o time o desconhecido ponta Daniel Bertoni, então na segundona pelo Quilmes; e, diante da venda do pulmão Pastoriza ao Monaco, promoveu-se dos juvenis o volante Rubén Galván. Essas duas caras novas futuramente venceriam a Copa do Mundo de 1978, na qual Bertoni inclusive marcou o último gol. Outro rosto novo era o de Pavoni; embora desde 1965 no clube, agora estava munido de um pioneiro implante capilar para curar seu complexo contra a calvície que lhe chegara aos 23 anos…

Os resultados domésticos ruins fizeram a diretoria do Rojo chamar alguém com mais experiência na Libertadores, e assim Maschio (outro não conformado com a careca, adotava uma peruca mesmo) veio. Mesmo raciocínio fora empregado para trazer o uruguaio Julio Montero Castillo (campeão com o Nacional em 1971, semifinalista da Copa de 1970 com a Celeste e pai de Paolo Montero) para a vaga de Pastoriza; Galván não se firmaria de imediato, tampouco Bertoni; Balbuena seguiu firme na sua ponta e a outra passou a ser ocupada por Mario Mendoza, enquanto Maglioni e Miguel Ángel Giachello se revezaram como centroavantes. Como campeão de 1972, o Independiente teria a benesse de começar a de 1973 já no triangular-semifinal, benefício que se repetiria ao longo do ciclo, mas que segundo Sá não facilitava tanto assim:

“Jogamos jogos-desempates na final, então no total eram sete jogos. Hoje também há muitas equipes fracas na fase de grupos, se veem goleadas, então a Libertadores real começa nas oitavas-de-final, para ser campeão são só sete partidas também”. Fato é que o triangular-semifinal em 1973 foi travado com os vizinhos do San Lorenzo, em sua melhor fase no século XX – o Ciclón venceu quatro títulos argentinos entre 1968 e 1974; e o Millonarios, com dois futuros membros trivices do torneio pelo “argentino” América de Cali nos anos 80: o craque Willington Ortiz e o treinador Gabriel Ochoa Uribe. Estreando a exatos dois meses do título, o Independiente começou mal. Em 6 de abril, derrota de 1-0 na Colômbia, gol por baixo do corpo do goleirão Santoro, enquanto Pavoni perdeu um pênalti. Foi exatamente a única participação do astro Montero Castillo, avaliado como lento demais e inicialmente sobrepujado por Héctor Martínez e Víctor Palomba para na reta final ter o posto reocupado pelo Perico Raimondo.

O pôster que uniu gente do bi de 1964-65 (Avallay, Toriani, Bernao, Guzmán, Zerillo, Mura e Acevedo) com o elenco bi de 1972-73 (destaque à inexpressividade do técnico Maschio, o primeiro da terceira fileira de cima para baixo)

O troco veio em Avellaneda, em um 2-0 com El Chivo Pavoni indo à desforra em tiro livre e com Balbuena encobrindo o goleiro em cabeceio; o jogo teve ainda os únicos minutinhos do centroavante Juan Carlos Merlo na campanha, a contar ainda com a estreia de Galván, que não deixaria mais os titulares. Àquela altura, porém, os campeões não podiam perder fora de casa para o San Lorenzo, ou estariam eliminados, pois os vizinhos souberam sair invictos contra o Millonarios. O grande personagem do duelo no Gasómetro foi Balbuena, marcando de cabeça o primeiro gol visitante e fornecendo a assistência para o de Giachello no empate em 2-2. Ainda assim, os azulgranas puderam visitar Avellaneda tendo a vantagem do empate. E bem que tentaram jogar com o regulamento embaixo do braço, com só Rubén Ayala fora do campo defensivo.

Mas uma brilhante jogada de equipe terminou com o iluminado Giachello “roubando” a conclusão do colega Mendoza para encher a canhota e marcar o único gol. Agora seria a vez de encarar o primeiro chileno finalista da Libertadores, algo que gerou empolgação tamanha no outro lado da Cordilheira que teria até atrasado o golpe de Pinochet – uma tentativa no mês da final (junho) realmente ocorreu e foi frustrada antes da conspiração para derrubar Allende terminar por bombardeá-lo em pleno palácio presidencial já em setembro. Para El Chivo Pavoni, seriam as finais mais complicadas do tetra: “o Chile estava vivendo uma situação muito especial politicamente, e para eles essa Libertadores era a Copa do Mundo. A personalidade da equipe nessas três partidas foi enorme. O Colo-Colo tinha um timaço”, destacou na nota ao La Nación.

Pudera: o adversário deixara para trás a também chilena Unión Española e os equatorianos Emelec e El Nacional na primeira fase e, na sua semi, o Cerro Porteño e o Botafogo – o time de Jairzinho, Dirceu e do argentino Rodolfo Fischer foi batido pelo Cacique em pleno Maracanã por 2-1, na primeira vitória chilena ali. E as finais foram mesmo marcadas pelo equilíbrio. A ida foi em Avellaneda e, apesar de Maglioni e Semenewicz acertarem as traves, foi o retrancado adversário quem abriu o placar, já nos últimos 20 minutos. Um gol contra de Sá ao tentar desviar um cruzamento colocou os visitantes na frente.

Mas, já aos 30, Mendoza empatou, aproveitando bola mal recuada de Alejandro Silva ao goleiro Adolfo Nef e dividindo com ele – o que ainda gera reclamação, embora se lembre menos que o alvinegro Guillermo Páez escapou de uma expulsão após agredir Mendoza na comemoração. No Chile, o empate foi sem gols, apesar de uma boa chance desperdiçada por Bertoni; o jovem estreara na competição nos 15 minutos finais do jogo de ida e Maschio reutilizou essa tática no da volta. Pavoni admitiria ao La Nación que nos quinze minutos finais os argentinos tratavam de mandar a bola “à cordilheira”. Não se envergonhava: “sempre digo aos garotos: quais são os problemas do atacante e quais os do defensor? O atacante tem quatro problemas: a bola, o rival, o goleiro e os companheiros, que gritam ‘passe a bola, passe a bola’. O lateral tem um só: a bola. Quatro problemas contra um. Se mandas a bola para fora, pronto, solucionas tudo”.

Segundo o depoimento de Sá ao La Nación, o árbitro daquela segunda final – o brasileiro Romualdo Arppi Filho, futuro juiz da final da Copa do Mundo de 1986 – lhe teria confidenciado muito tempos depois que aquele foi o jogo mais complicado da carreira. Sem critério de gols fora de casa, um jogo-extra em campo neutro foi marcado para Montevidéu. E para cativar ainda mais os uruguaios, tão rivais dos argentinos, a delegação colocolina trouxe consigo Sergio Catalán Martínez, o camponês chileno que em dezembro de 1972 encontrara sobreviventes uruguaios da famosa tragédia aérea nos Andes que forçara-lhes ao canibalismo. Pavoni lembrou bem: “fizeram-no dar a volta olímpica e todo o público se voltou por eles”.

Sá foi mais humorado: “ali ganharam o público, [mas] na realidade, já éramos visitantes de entrada porque [de casa] fora ninguém gosta de nós”. A finalíssima já teve movimentação mais cedo no escore: aos 25 do primeiro tempo, novamente Mendoza marcou, colocando o pé no último instante em bola aparentemente desperdiçada por Maglioni. Mas a estrela transandina Carlos Caszely, que fizera no Maracanã sobre o Botafogo e fora o artilheiro daquela edição (9 gols; ainda, hoje, é o único chileno goleador de uma Libertadores) e até marcara um gol anulado na segunda final, empatou aos 39: encobriu Santoro ao ser lançado.

O gol do título de 1973: confusão na grande área e, na sobra da jogada de Bochini (o camisa 17 do lado vermelho), Giachello marca

O placar não se alterou até o fim do jogo, mesmo com duas alterações nos times: aos 21 do segundo tempo, Maschio promoveu a estreia de Ricardo Bochini no torneio, no lugar de Maglioni. Aos 32, o zagueiro chileno Leonel Herrera foi expulso e assim Maschio reforçou o ataque, trocando o ponta Mendoza por um atacante de ofício, Giachello. Mas o torneio precisou mesmo de prorrogação do jogo-extra e nela Bochini conseguiu seu primeiro grande momento no clube do qual se tornaria o maior ídolo da história. E foi rápido. Logo aos 2 minutos da prorrogação, uma bomba de Rubén Galván não foi segurada por Nef. Bochini consegue insistir na jogada, e no bate-rebate Giachello aproveitou o gol livre para marcar e gritar “sou um fenômeno!” – foi mesmo seu grande momento no clube.

Aquela conquista isolou desde ali o Independiente como maior campeão da Libertadores, fazendo com que a El Gráfico promovesse uma foto juntando gente do bi de 1964-65 com alguns dos membros do bi de 1972-73, incluindo um Maschio de poucos sorrisos. O título garantido em 6 de junho seria referendado no mesmo mês com a conquista da Copa Interamericana, antigo tira-teima entre os campeões da Libertadores e da Concacaf; esses duelos de 1973, nos dias 17 e 20 de junho, ainda valiam pelo ano de 1972.

O Independiente aceitou jogar as duas partidas na casa do adversário, o Olimpia de Honduras. Mesmo esgotado por trinta horas de viagem intercalada com paradas em Lima e no Panamá, chegando a San Pedro Sula apenas três horas antes do pontapé inicial do primeiro jogo, o Rojo venceu os dois jogos: no primeiro, aproveitando rebote da barreira de uma falta cobrada por Pavoni, Semenewicz abriu o placar ainda no primeiro tempo, aos 28 minutos. Aos 6 do segundo, Raimondo lançou desde o meio-campo para Maglioni, que passou por dois hondurenhos antes de concluir na saída do goleiro. O Olimpia só pôde diminuir sob um impedimento não assinalado pela arbitragem.

Descansados, os argentinos conseguiram um placar mais folgado na revanche, mesmo que Galván e Giachello os desfalcassem, regressando ao país antes para remendar a equipe B que representava o Rojo em compromissos pelo campeonato argentino. O segundo jogo foi na capital Tegucigalpa. Maglioni emendou de cabeça um cruzamento de Balbuena aos 42 do primeiro tempo. O próprio Balbuena marcou o outro gol, aos 39 do segundo, com um toque suava na saída do goleiro – confirmando a segunda copa internacional do Independiente no espaço de 15 dias.

Mas a falta de sorriso de Maschio tinha explicações mais profundas que seu passado racinguista: “devo ser o único técnico suspenso pelo próprio clube. Não me dava bem com os dirigentes, e queriam me fazer treinar em El Pato, porque era preciso cuidar do nosso campo. Eu estava jogando a Libertadores, então treinei no campo. Se reuniram e me suspenderam por um mês. Renunciei. Ia fazer o quê?”.

Assim, Roberto Ferreiro novamente foi chamado para substituir um antigo ídolo do Racing. Como em 1972, o Independiente fez uma campanha nacional medíocre, mas El Pipo teve como ganhar moral para permanecer no cargo: em novembro, enfim, o Independiente pôde ser campeão mundial pela primeira vez. Novamente campeão europeu, o Ajax alegou falta de brechas no calendário para reencontrar os argentinos. A vice Juventus topou desde que o troféu fosse disputado em jogo único em solo italiano e com arbitragem italiana. “A Comissão Diretiva chamou as referências para ver o que fazer e no fim aceitamos. O Independiente já havia perdido as de 1964 e 1965 com a Inter [de Milão] e a de 1972 com o Ajax. Não podíamos deixar passar”, descreveria Pavoni ao La Nación. “Votamos e dissemos ‘vamos jogar'”, completaria Sá em 2022.

A volta olímpica do título mundial foi dada antes de um clássico com o Racing na casa vizinha. E é possível ver o aplauso da torcida rival para o desfile de Santoro, López (cabisbaixo pois perdia o pai para o câncer), Pavoni, Commisso, Galván, Sá (encoberto), Balbuena, Semenewicz, Bochini (encoberto) e Bertoni. Tempos sadios

Já experiente com esse tipo de desvantagem, o Rojo aceitou, sob descrédito generalizado da imprensa esportiva do próprio país: nenhum enviado especial foi bancado para cobrir a partida. “Era isso ou nada. A Comissão Diretiva, então, nos pediu que decidíssemos o que queríamos fazer. Nem duvidamos em aceitar”, lembrou Ferreiro nos vinte anos da conquista, em 1993, descrevendo que “a equipe estava bem equilibrada, tínhamos garotos jovens e jogadores experientes” e que “o que acontece é que a esta equipe só faltava isso. Já havia ganho tudo. E estava muito mentalizada”. Com uma atuação impecável de sua retaguarda, o Independiente contou ainda com a sorte de campeão quando Antonio Cuccureddu isolou um pênalti inexistente atribuído a Galván.

Aos 35 minutos do segundo tempo, Bochini deu segundo passo rumo à imortalidade, concluindo na saída de Dino Zoff (que vinha há quase mil minutos sem sofrer gols) uma contínua troca de passes desde o meio-campo com Bertoni para marcar o único gol da primeira conquista mundial do Independiente. Como se não bastasse, o jogo seguinte dos campeões seria um Clásico de Avellaneda em pleno Cilindro racinguista. Como se não bastasse menos ainda, se o Rojo vencesse, passaria a ter mais vitórias que o rival no duelo. E venceu, com Bertoni, Maglioni e Sá assinalando o 3-1 descontando pelo ex-gremista Néstor Scotta após uma volta olímpica com a taça antes da partida. A volta olímpica aplaudida pelos próprios torcedores racinguistas, como pontuado por Pavoni no início dessa nota.

Aliás, Pavoni foi à Copa do Mundo de 1974. Não era pouca coisa: até então, a seleção uruguaia não permitia convocações de quem jogasse fora do país. A presença do Chivo inclusive revoltou Fernando Morena, maior artilheiro do campeonato uruguaio e que recusava oferta do Real Madrid exatamente por ver-se ameaçado de ir ao Mundial. Mas o lateral não podia mais ser ignorado. E calharia de ser dele o único gol da Celeste em sua pobre campanha na Alemanha Ocidental. Pela Argentina, Balbueno, Sá, Santoro foram os rojos que vestiram Albiceleste.

1974

A campanha morna no Torneio Nacional de 1973 também foi repetida no primeiro semestre de 1974, no Torneio Metropolitano; a Libertadores, dessa vez, se desenrolaria no segundo semestre, diante da preparação das principais seleções para a Copa do Mundo. Ainda com moral pelo Mundial, Ferreiro seguiu. Mas o time-base precisou ser alterado: Santoro (então o jogador mais vezes campeão da Libertadores, com seus quatro títulos acumulados) foi à Copa e, mesmo sem jogar na Alemanha, transferiu-se a La Liga, acertado com o Hércules.

Mas o próprio Pepé Santoro vinha preparando seu herdeiro, o ótimo reserva Carlos Gay – que não, não convivia com piadinhas pelo sobrenome mesmo em tempos ainda mais machistas, pois usava-se expressões caseiras para zombar-se de homossexuais; a ignorância quanto à palavra inglesa na época era tamanha que ele era narrado como “Gái” e não “Guêi”. Garisto, por sua vez, voltara a seu Uruguai para defender o Peñarol. As outras mudanças foram táticas. El Polaco Semenewicz, outrora no meio-campo, foi ocasionalmente recuado para preencher a vaga na zaga, abrindo espaço pontual para Saggioratto deixar de ser improvisado na ponta e ser posicionado no meio junto a Raimondo e Galván.

Em outras ocasiões, Semenewicz voltava ao meio, com El Zurdo López e Pancho Sá exercendo a dupla de zaga – e, por um único jogo, Osvaldo Carrica. Na frente, Bertoni e Bochini estavam mais do que firmados no trio com Balbuena. O outro atacante usado, Luis Giribet, só foi acionando nos sete minutos finais no lugar de Bertoni do 3-0 no Huracán e nos cinco últimos minutos da finalíssima, também para a saída de Bertoni; as outras substituições no tridente ofensivo se deram para reforçar a defesa, quando Bertoni deu lugar a Semenewicz na segunda final ou quando Carrica entrou por Balbuena na finalíssima.

Independiente na virada de 1973 para 1974: Pavoni, Martínez, Giuliano, Merlo, Otero, López, Bertoni, Gay, Garisto e o técnico Ferreiro; preparador físico D’Ascanio, Mendoza, Santoro, Arispe, Bochini, Galván, González, Palomba e Sá; Saggioratto, Cabezal, Commisso, Maglioni, Raimondo, Balbuena, Semenewicz e massagista Las Heras

Tal como em 1973, o time teve o benefício de adentrar na Libertadores já no triangular-semifinal. Dessa vez, a campanha não durou nem dois meses, e sim um e meio. Em compensação, foi preciso encarar duas pedreiras: o mágico Huracán campeão de 1973, em trabalho que credenciou César Menotti a assumir a Argentina no pós-Copa, embora El Flaco ainda conciliasse inicialmente os dois cargos, e um Peñarol ainda com aura copeira.

Outro detalhe é que o Rojo teria que jogar de visitante nas duas primeiras partidas. Nada que fosse tão pesado àquele elenco vencedor. Bochini, assumido torcedor do rival huracanense San Lorenzo, teve o gosto de abrir de cabeça o placar depois só empatado por Miguel Ángel Brindisi no bairro de Parque de los Patricios, em 4 de setembro. E no Centenário foi ainda melhor: Bertoni abriu o placar com um gol olímpico logo aos 16 minutos. Um gol contra do lateral Commisso empatou já aos 23, mas os dribles de Bochini e os piques de Balbuena foram demais para o ex-colega Garisto: aos 43, El Mencho anotou o 2-1 e também o 3-2, já aos 21 do segundo tempo – Ramón Silva havia empatado provisoriamente no segundo minuto da etapa complementar em confronto do dia 18.

Apenas 48 horas depois, era a vez de receber o Huracán, surrado sem piedade em um 3-0 enganoso porque a goleada poderia ter sido até maior. Bertoni marcou os primeiros, aos 44 do primeiro tempo e aos 14 do segundo, e aos 17 foi a vez de Saggioratto anotar o golpe de misericórdia. Com a vaca huracanense já no brejo, o adversário Alfio Basile, antigo ídolo racinguista nos anso 60, ainda foi expulso aos 31.

Bastava usar o regulamento sob os braços contra o Peñarol em 2 de outubro. Bertoni até abriu o placar, ganhando de cabeça uma disputa área, matando no peito e emendando o tiro no canto esquerdo de Walter Corbo logo aos 7 minutos de jogo. Fernando Morena empataria aos 28 do segundo tempo e os argentinos não tiveram maior trabalho em usar as regras para se confirmarem em nova final, agora contra o São Paulo, que buscava a revanche pela queda nas semifinais de 1972.

Brasileiros costumam esnobar a seca de títulos na Libertadores naqueles tempos, levando em conta apenas quando supostamente resolveram levá-la a sério, nos anos 90, justamente após o bi são-paulino em 1992-93. E o Tricolor, treinado pelo argentino José Poy, não pode usar essa desculpa para o seu vice: três dias antes da final, pela última rodada do primeiro turno do Estadual, usou nove reservas para o clássico com o Corinthians, que venceu por 1-0. A medida visava exatamente poupar os titulares para as finais da Libertadores e foi tomada mesmo com desaprovação de imprensa e torcedores: tudo porque naquele clássico o Timão sagrou-se campeão do primeiro turno, dando grande passo para desfazer aquele famoso jejum, que entrava no vigésimo ano. Foi o célebre Estadual em que os alvinegros, após perderem para o Palmeiras um título que davam como certo, defenestraram o ídolo Rivellino.

Para encarar esse foco dos paulistas, o Rojo se fez acompanhar no Pacaembu de um ídolo das duas torcidas, o fora-de-série Antonio Sastre. Houve mesmo uma homenagem mútua a ele e está lá, no Jornal do Brasil de 12 de outubro de 1974, data da primeira final: “o São Paulo recuperará seu prestígio com a torcida se vencer o Independiente, uma vez que a iniciativa da diretoria em escalar o time misto quarta-feira passada, diante do Corinthians, não agradou aos torcedores. A justificativa, na ocasião, foi justamente a partida de hoje”.

Os pênaltis que definiram a finalíssima de 1974: Pavoni converte o dos argentinos e Gay pega o dos brasileiros

Apenas Paranhos e Terto voltariam a campo após o clássico. Apesar da irritação, a torcida tricolor “lotou o Pacaembu”, segundo relato do mesmo Jornal do Brasil, na edição seguinte. O Independiente demonstrou sua experiência copeira: suportou no primeiro tempo a superioridade são-paulina, que “teve pelo menos seis grandes oportunidades para marcar” e abriu o marcador em um contra-ataque. Bochini habilitou Saggioratto, que chutou cruzado e anotou aos 29 minutos. 

Mas o São Paulo recuperou-se bem cedo no segundo tempo, com Chicão substituindo Ademir. Aos 7 minutos de reinício, já havia virado o jogo; Pedro Rocha empatara aos 3 concluindo jogada de Piau, e pouco depois Gay não segurou um chute de Nelson. Mirandinha aproveitou o rebote e virou. A partida ficou no 2-1 e se encerrou com polêmica: um torcedor argentino entrara em campo para cumprimentar Pavoni. “Nesse momento, o policial o agrediu. Foi uma atitude bestial, sem razão nenhuma. De qualquer forma, em Avellaneda lhes daremos uma verdadeira lição”, registrou o uruguaio no Jornal do Brasil.

Décadas depois, ao La Nación, Pavoni também realçou as dificuldades daquela decisão: “tinham Rocha, Pablo Forlán, era uma grande equipe. Fui chutar o pênalti tranquilo como sempre. Bah, tranquilo por fora, por dentro eu era um vulcão. Tremenda final”. Curiosamente, ele também relevou que o homem que intermediara sua chegada ao Rojo era exatamente o sogro de Pablo Forlán (e avô materno de Diego), o ex-volante Juan Carlos Corazzo. 

Saggioratto, Galván e Raimondo também foram agredidos pelos policiais, segundo o Diário da Tarde. O técnico Ferreiro também advertiu: “Poy preocupou-se muito mais em criar um clima especial do que enfrentar o Independiente como equipe”. A lição foi dada. Novamente nas palavras do Jornal do Brasil, na volta “desde o início da partida o quadro argentino dominou inteiramente o adversário. O objetivo do Independiente foi marcar Pedro Rocha e Mirandinha com muita atenção e daí partir para as iniciativas ofensivas, explorando sempre a velocidade de Bochini, o melhor jogador da partida”. 

El Bocha abriu o marcador cobrando falta, aos 33 minutos. “O quadro do São Paulo, inteiramente desentrosado, perdeu as ações no meio do campo. Seu ataque não se movimentava para receber os passes e a defesa se limitava a chutar a esmo para a frente, a fim de se livrar da bola e do perigo constante que o adversário criava na sua área. No segundo período, o São Paulo esboçou uma reação. A equipe foi toda para o ataque em busca do empate, mas o fez desordenadamente e logo aos dois minutos sofreu o segundo gol, marcado através de Balbuena. Com a vantagem no placar, os argentinos passaram a jogar com tranquilidade, limitando-se apenas a tocar a bola para fazer o tempo passar”, retratou o Jornal do Brasil.

O segundo jogo também se encerrou com alguma confusão, com um expulso para cada lado no último minuto: Terto e Saggioratto. Os 2-0 fariam o Independiente ser campeão pelos critérios atuais, mas os da época forçaram um jogo-extra. Pelo saldo melhor, os argentinos seriam campeões se a peleja terminasse empatada ao fim de uma eventual prorrogação. O tira-teima foi combinado para Santiago, em 20 de outubro. E o público chileno abraçou os brasileiros, segundo relato tanto da mídia tupiniquim como da argentina. O jogo foi pobre e violento, tanto que um pênalti foi marcado para cada lado. Segundo o Jornal do Brasil, “a partida, de nível técnico medíocre, foi marcada pelas jogadas duras das duas equipes, cujos jogadores se igualaram também nos lances desleais. Os brasileiros contaram com a torcida dos chilenos”.

Os capitães finalistas de 1974 eram uruguaios: Pavoni e Pedro Rocha. Àquela altura, Pavoni e a taça já eram “dois velhos amigos” e assim permaneceu

Ainda segundo o JB, “o Independiente, mal foi dada a saída na bola, demonstrou ser realmente uma equipe de decisão. Seus jogadores, com muita determinação, envolveram logo o meio-campo do São Paulo, onde Pedro Rocha, sem condições de jogo, mostrava-se lento e sem imaginação. (…) Tendo López como líbero e uma defesa bem plantada, os argentinos não se preocuparam com a gritaria da torcida chilena, que incentivava os brasileiros e os hostilizava, organizando ataques rápidos, principalmente através de Bertoni pela esquerda e Bochini pelo meio. Após conseguir o gol, o Independiente tratou de garantir o marcador, não permitindo que os brasileiros manobrassem a partir da sua intermediária”.

O único gol veio no primeiro tempo, no pênalti marcado aos rojos, após falta de Paranhos em Bochini. Pavoni deslocou Valdir Peres, que caiu à esquerda com a bola indo ao outro lado. O São Paulo teve sua melhor chance no seu pênalti, assim descrito pela El Gráfico: “esse rumor movimentado das tribunas chilenas festejando já o preâmbulo do empate. E um se pergunta desconcertado por que os chilenos se manifestam tão calorosamente partidários dos brasileiros… ao cabo, o silêncio. Zé Carlos defronte a bola. Zé Carlos que atira à direita do garoto Gay. E o garoto Gay revolcando-se com a bola. A bola que se vai das mãos. Que ameaça transpor a linha. Que não a transpõe. Que volta às mãos do garoto Gay. Que arranca explosão do grupo argentino. Que não é empate”.

A festa, ainda assim, precisou esperar o retorno à Argentina, diante do toque de recolher que a ditadura de Pinochet impunha nas noites chilenas, enquanto em Avellaneda se celebrava até de madrugada. E os próprios chilenos, conforme registro do Diário da Tarde, reconheceram os méritos dos campeões: “a imprensa chilena é unânime em considerar que o Independiente mereceu a vitória de sábado à noite. (…) Os comentaristas esportivos dos jornais chilenos afirmam que o triunfo argentino foi merecido. (…). ‘O Independiente não representa o futebol clássico da Argentina porém sabe segurar um resultado que lhe é favorável, eis porque nas finais é sempre considerado favorito’, salienta [o jornal] El Mercurio“.

A capa da El Gráfico, por sua vez, mostrou o capitão e o autor do gol do título sob a legenda “Pavoni e La Copa, dois velhos amigos”. “Na década de 70, o Independiente era mais famoso ainda que o Santos de Pelé. Nos reconheciam em todos os lados”, jurou o uruguaio à edição especial em que a El Gráfico elegeu em 2011 os cem maiores ídolos do Rojo. Mas o tricampeonato seguido não sustentaria o técnico Ferreiro. Mas ele ainda teve tempo para sair com outro troféu internacional. 

O Bayern Munique havia sido o campeão europeu, diante de um Atlético de Madrid cheio de argentinos. O time alemão, longe da solidez atual e com poucos títulos na Bundesliga, preferiu capitalizar amistosos em cima do grande momento que achava que dificilmente poderia se repetir e abriu mão de um Mundial Interclubes em dois jogos. Diante dessa indefinição, o primeiro tira-teima do Independiente foi contra o campeão de 1974 na Concacaf, o Deportivo Municipal, pela Copa Interamericana de 1974 – a de 1973 não fora acertada diante do abandono dos times do norte e do centro na definição contra o vencedor de eliminatória caribenha, o Transvaal (que até tentou reagendar em 2006 o encontro inviabilizado!). 

Independiente de 1975: roupeiro Basile, Carrica, Balbuena, Medina, Pogany, Raúl Silva, Goyena e roupeiro Torrado; massagista Bonell, técnico Dellacha (campeão também em 1972), Lencina, Saggioratto, Gay, Aldo Rodríguez, Arroyo e preparador D’Ascanio; Juan López, Galván (que venceria a Copa do Mundo de 1978), Cabezal, Sá, José Pérez, Commisso, Pavoni e Giribet; Cuiña, Miguel López, Ruiz Moreno, Rojas e Semenewicz

Em 1974, por sua vez, o Municipal derrotara o próprio Transvaal. Foi possível acertar com a equipe da Guatemala dois jogos em novembro. De novo, ambos no solo adversário.O Rojo havia acabado de classificar-se às semifinais do Torneio Nacional de 1974 com um 7-0 no San Lorenzo de Mar del Plata. O time jantou na confeitaria do próprio estádio, pegou o ônibus rumo ao aeroporto de Ezeiza e partiu à América Central.

Em 24 de novembro, Bochini e Bertoni repetiram a jogada que os consagrara diante da Juventus, agora com o Bocha marcando logo aos 14 minutos de jogo o único gol do primeiro duelo. Ele ainda sofreu um pênalti ignorado pela arbitragem em outro lance. O jogo seguinte ocorreu 48 horas depois.

Bochini agora era cercado e o máximo que os visitantes, jogando de branco, conseguiram foi uma pancada de Bertoni no travessão e outra de Pavoni na trave esquerda. O argentino José Mitrovich, depois naturalizado pela seleção guatemalteca e empregado no próprio Independiente como auxiliar em 1994, devolveu o 1-0 aos 5 minutos do segundo tempo. O resultado persistiu na prorrogação. Nos pênaltis, novamente Gay se sobressaiu, pegando o terceiro tiro, do marcador pessoal de Bochini (Carlos Monterroso) enquanto o de Julio César Anderson já havia acertado o travessão, na segunda cobrança da casa. Pavoni, Giribet, Bochini e Bertoni foram todos eficazes.

Os campeões agora de toda a América ainda acertaram um amistoso no dia 28 contra os costarriquenhos do Herediano antes de, no regresso à Argentina, concluírem uma maratona de sete jogos em 17 dias com os compromissos do octogonal final que decidiu o Torneio Nacional. Compreensivelmente, o Rojo terminou só em 5º, mas com nova vaga já garantida nas semifinais da Libertadores de 1975.

1975

Seguiram-se idas e vindas de negociações com o Bayern, cujos amistosos (incluindo contra a seleção italiana em novembro e contra um combinado japonês em Tóquio em janeiro de 1975) e uma quase eliminação precoce na Liga dos Campeões de 1974-75 fizeram os bávaros se desleixarem na Bundesliga, onde até brigaram para não cair. Até que em fevereiro de 1975 a UEFA confirmou que seria representada pelo Atlético de Madrid no Mundial ainda válido por 1974. Tempo suficiente para alterações no time titular: Gay voltou a reserva diante da contratação de José Alberto Pérez, ex-goleiro do River, que levara em troca o meia Raimondo – cuja posição seria preenchida pelo astro peruano Percy Rojas.

Em 12 de março, o primeiro bi mundial do futebol argentino pareceu ao alcance, quando Balbuena marcou o único gol de um duelo monótono em Avellaneda. Mas em 10 de abril os numerosos argentinos do Atleti fizeram os espanhóis levarem a disputa a sério: 70 mil colchoneros preencheram as arquibancadas do Vicente Calderón. E os argentinos do oponente foram fundamentais também no jogo em si. Javier Irureta abriu o placar cabeceando bola que José Gárate (nascido em Sarandí, vizinha a Avellaneda, embora crescido na terra dos pais, ambos bascos) lhe cruzou após ser lançado em profundidade por Rubén Ayala, aos 21 minutos. E este, antigo ídolo do San Lorenzo assim como o beque rojiblanco Ramón Heredia, marcaria o gol do título a cinco minutos do fim, aproveitando bate-rebate resultante do lançamento que Heredia fizera ao cobrar uma falta.

Ausências na foto anterior: a dupla dinâmica Bertoni e Bochini. Ao lado, o gol olímpico de Bertoni sobre o Cruzeiro nas semifinais de 1975

O “vice contra o vice” e resultados ruins no Torneio Metropolitano de 1975 custaram o cargo de Ferreiro. A diretoria do Independiente recontratou o velho conhecido Dellacha para a Libertadores, iniciada em 6 de maio para os multicampeões. Os adversários do triangular-semifinal seriam o Rosario Central de Mario Kempes e o Cruzeiro. Novamente, seria preciso em contrapartida à benesse de entrar já naquela fase encarar como visitante os dois primeiros jogos.

E aquela seria a campanha mais acidentada: o já Rey de Copas perdeu de 2-0 os dois primeiros duelos. Não bastava ganhar os outros dois; era preciso tirar um saldo negativo de quatro gols. Inversamente, o Cruzeiro poderia até perder ambas as partidas que faria na Argentina desde que não saísse do país com quatro gols sofridos que iria à decisão. Um empate o asseguraria nela. Mas em uma semana, de 30 de maio a 6 de junho, o avesso do avesso se tornou possível. Primeiramente, o saldo negativo diminuiu para -2 diante dos rosarinos em Avellaneda. Já eram 25 minutos do segundo tempo quando um gol contra de Roberto Pascuttini abriu o placar ao Rojo. E já eram 34 quando Bochini foi lançado na meia-lua por Rojas, passou pelos assustadores irmãos Daniel e Mario Killer e pelo próprio Pascuttini, deixou Jorge González no chão antes de concluir um golaço em chute cruzado contra Carlos Biasutto.

O Central, em seguida, ajudou ao impor um 3-1 no Cruzeiro. O resultado não era tão favorável assim aos canallas: eles chegavam a 4 pontos, mas com saldo zerado enquanto o dos brasileiros, com mesma pontuação, descia para dois gols positivos. Ainda assim, não bastaria ao Independiente vencer o Cruzeiro. Era preciso derrota-lo por pelo menos três gols de diferença, matemática onde o Rey de Copas ficaria com um gol positivo no saldo e a Raposa, com um negativo – uma vitória do Rojo por um gol de diferença classificava os brasileiros, e por dois gols forçaria apenas um jogo-desempate entre eles e os rosarinos. A missão dada foi missão cumprida. Ou, nas palavras de Pavoni e Sá ao La Nación:

“Nunca vivi uma euforia como a prévia a essa partida. Não depois dos três gols, porque isso é normal. Antes. A torcida confiava tanto em nós… e se fazia sentir. Tínhamos um plus, uma história que pesava durante as partidas. Havíamos nos convertido em uma equipe copeira e sabíamos usar esse plus frente aos contrários. Nos respeitavam muitíssimo. El Bocha estava em seu melhor momento, e na defesa nos conhecíamos de memória, era muito difícil nos meter um gol” (Pavoni). “Os outros se apequenavam. Tínhamos uma defesa bárbara, que repetimos durante os quatro anos, salvo por alguma lesão ou expulsão (…). [Desde 1974] já nos sentíamos vencedores, esse era o nosso sentimento, nossa mentalidade, porque quando não ganhas nada, tens tuas dúvidas, mas quando és vencedor parece que fica mais fácil” (Sá).

O primeiro gol foi de pênalti (“legítimo”, segundo avaliou a Placar), convertido aos 35 minutos pelo capitão Pavoni (“por sorte eu tinha boa pontaria”, gargalharia ao La Nación) e “o Independiente já tinha feito por merecer outros”, ressaltou a revista brasileira. O Cruzeiro ensaiou cozinhar o jogo e até assustou o arqueiro Perico Pérez. Mas tamanho era o quilate exigido para a reviravolta que até gol olímpico ela teve, já na segunda etapa: outra vez Bertoni arranjou um desses, aos 21 minutos do segundo tempo. A Placar não perdoaria: “o Cruzeiro chora o impossível. Desde 1963, com o Santos, o futebol brasileiro não tinha chance tão grande de conquistar a Taça, acabar com a banca de argentinos e uruguaios”.

Sem pachequismos, a revista culpou bastante a tática medrosa dos visitantes, recuando seus pontas e assim estimulando os laterais argentinos (que tradicionalmente não são ofensivos) a atacarem junto. “Hilton Chaves preferiu confiar na sorte. Ou em perder só por 2 a 0. Deu-se mal”. Deu-se mal porque aos 31 minutos Bertoni cobrou outro escanteio, dessa vez mais aberto, achando a cabeça de Ricardo Ruiz Moreno. “Não importa que o segundo gol, olímpico, aos 20, fosse um lance isolado. Importa que Balbuena aos 12, Bochini aos 15 e Ruiz Moreno aos 16 tenham perdido chances incríveis (…). E que quando Ruiz Moreno marcou o terceiro, Dirceu Lopes e Palhinha já tinham perdido o fôlego e a capacidade de reação” foram outras palavras duras da Placar, ressaltando que Dirceu e Palhinha eram os únicos cruzeirenses a tentarem atacar.

A outra grande vítima brasileira do tetra do Independiente, já em 1975, foi o Cruzeiro. Era preciso vencê-lo por 3-0 para ir à final. E esse é o lance dos 3-0, para o desconsolo final do goleiro Raul

A revista tratou de contra-argumentar os resmungos que publicoudo goleiro Raul (“foi sorte deles. Não gostei do Independiente. É um time grosso, que só dá chutões”): “Galván e Percy Rojas exibiam uma boa técnica na armação de jogadas rápidas de ataque; Balbuena ganhou sempre de Vanderlei; Bertoni deu um suadouro em Nelinho; e Bochini (…) fez uma partida primorosa. Acima de tudo, porém, o Independiente procurou subir em conjunto, com um lindo toque de bola – ironicamente parecido quando o Cruzeiro procura o gol”, concluía a reportagem brasileira pós-jogo.

Hoje é irônico ver nela como os jogadores de um dos times tupiniquins mais copeiros internacionalmente jogavam a toalha sobre a própria capacidade, especialmente quando se leva em conta que no ano seguinte a Raposa enfim venceria a Libertadores. Mas em 1975, Piazza, após aqueles 3-0, dizia que “a Libertadores não é para times do nosso tipo (…). Fiquei convencido de que não estamos preparados para enfrentar o futebol de competição que os argentinos mostraram (…). É mesmo de desanimar. Em 1967, perdemos no finzinho jogando contra a garra do Peñarol e do Nacional. E olhe que tínhamos Tostão. É melhor desistir”. Clique aqui para ver.

Pela frente, os chilenos da Unión Española, reforçada com dois remanescente daquele Colo-Colo vice de 1973, o meia Leonardo Véliz e o atacante Sergio Ahumada; e dois argentinos – o volante Rubén Palacios e o atacante Jorge Spedaletti, que participaram ativamente daquela época de ouro dos gallegos, ganhando três títulos nacionais seguidos. Spedaletti acabaria até jogando pela seleção do Chile a partir daquele 1975. Devido à semelhança dos uniformes, na visita ao Chile o Rojo usou uma estranha camisa amarela. Os argentinos se entrincheiraram, mas Ahumada pôde saborear uma vingança: entrou a oito minutos do fim e faltando mais três marcou o único gol da partida.

A reação precisou esperar a volta em Avellaneda, mas foi imediata: já no primeiro minuto, Pavoni lançou e Rojas completou com o peito para abrir o placar. Forçados a buscarem jogo, os chilenos até empataram aos 13, quando Francisco Las Heras converteu um pênalti. Naturalmente, voltaram a se fechar. Tanto que também cometeram um pênalti em Rojas, convertido por Pavoni aos 13 do segundo tempo. Rojas e “aquele” Mario Soto deixaram as duas equipes com dez homens aos 15. Aos 37, Bochini preparou a jogada para Bertoni concluir rente à trave. Sem critério de saldo de gols, forçou-se uma terceira final, na neutra Assunção.

Dellacha usou basicamente o mesmo time que funcionara nos 3-1, onde a escalação vencedora foi Pérez, Commisso, Sá, Semenewicz e Pavoni, Rojas, Galván e Bochini, Balbuena, Ruiz Moreno e Bertoni (ainda entrou Giribet para os 12 minutos finais). Com a suspensão de Rojas, o curinga Semenewicz foi avançado para o meio-campo, com Miguel Ángel López substituindo-o na zaga com Sá. Ao longo da campanha do penta, também foram usados pontualmente o zagueiro Carrica na estreia e o volante Aldo Rodríguez nos dois jogos seguintes, onde Bochini ainda foi usado no tridente ofensivo antes de ser recuado – o que havia aberto um lugar a El Negro Ruiz Moreno no ataque. E coube a este abrir o placar aos 29 minutos, soltando uma bomba após tabelar com Galván. 

Os ataques chilenos se diluíam na meia-lua ante a solidez da copeiramente experiente zaga argentina. Aos 18 do segundo tempo, o tetra foi confirmado com Bertoni acertando uma falta. “O que digo desta equipe? O que digo outra vez do sexto campeão da América? Que pacto secreto e misterioso mantem com La Copa? (…) Nunca os rojos se enfrentaram a uma Copa tão acidentada e já quase tão perdida como esta. Mas depois, La Copa. O amante que volta a corteja-la com os velhos atributos de sua sedução. La Copa que se vai, que se distanciara definitivamente. Mas que conclui submetendo-se aos efeitos de um costume, desse que vem de muito longe. (…) Em um desses, até a mesma América já tomou afeto do velho proprietário” foi o quase poema publicado na revista El Gráfico na edição pós-título. 

Pavoni, que ergue o tetra do Independiente na Libertadores de 1975, finalizada em Assunção, entre o velho ídolo paraguaio Arsenio Erico (artilheiro maior do clube, à esquerda) e o ditador local Alfredo Stroessner 

De quebra, o tetra significava também um hexa acumulado, igualando Independiente a Real Madrid como máximos campeões continentais. Sá destacaria ao La Nación outra beleza adicional à quarta conquista seguida: “o mais louco é que tivemos que voltar de ônibus. Não lembro bem qual teria sido o problema, creio que a neblina, e tínhamos que voltar sim ou sim porque em poucos dias jogávamos contra o River pelo Metropolitano, então subimos em um ônibus, demoramos 16 horas se não me falha a memória. O curioso é que conosco voltava [o célebre locutor José María] El Gordo Muñoz, e em cada parada, ele se conectava desde um telefone público com a Radio Rivadavia e ia avisando por onde estávamos. então as pessoas dos povoados se aproximavam da estrada e nos saudava com lenços. Foi muito lindo”.

Restava igualar os espanhóis também por um penta seguido (e de quebra ultrapassa-los com o hepta acumulado), o que parecia óbvio: Independiente e Libertadores já estava algo tão corriqueiro que a capa daquela edição pós-tetra, ao invés de ser igualmente poética com a sede no Defensores del Chaco propiciar que a entrega do troféu a Pavoni – agora o novo recordista de títulos como jogador na Libertadores, superando Santoro ao acumular um quinto – se desse através do paraguaio Arsenio Erico (o maior artilheiro do Independiente e da liga argentina), retratou outra coisa. Nem assim os rojos chiaram: a capa exibia uma vitória do Boca por 4-3 naquele mesmo 29 de junho de 1975 sobre o arquirrival dos tetracampeões da América, o Racing. Que estava ganhando por 3-0. Parece que há realmente quem nasce para sofrer enquanto o outro ri…

Epílogo: série encerrada, mas mais uma Copa para as vitrines

Para variar, o Independiente não fez por onde nos torneios domésticos em 1975. Foi só 13º no Metropolitano e caiu na fase de grupos do Nacional, ainda que a dois pontos da classificação. O Bayern, outra vez campeão seguido na Europa, novamente recusou-se acertar datas para o Mundial – e o mesmo se aplicou a seu vice europeu, um Leeds United que mesmo com fama de áspero não teve coragem de encarar o Rey de Copas. Pela primeira vez, não houve um Mundial Interclubes. Sem essa oportunidade, os contínuos resultados ruins nos torneios domésticos, que incluíram derrota de 5-4 para o Racing três meses depois do tetra, gradualmente minaram a moral de Dellacha.

Em 1976, Dellacha terminou substituído por Miguel Ignomiriello e Don Pedro não teve pudor de no mesmo ano atravessar a vizinhança para regressar ao Racing, sendo o primeiro técnico a treinar em um mesmo ano a dupla de Avellaneda. Além do comando técnico, a defesa mudou muito. No gol, veio Ramón Quiroga, depois célebre como o goleiro argentino a serviço da seleção peruana na Copa de 1978. No resto da defesa, só Pavoni seguiu: na outra lateral, outro peruano, Eleazar Soria (outrora adversário a serviço do Universitario em 1972), ocupava a vaga de Commisso. A dupla de zaga agora se alinhava com Hugo Villaverde e Enzo Trossero. Na frente, se repetiam as caras conhecidas de Semenewicz, Rojas, Bochini e Bertoni.

A diferença é que El Mencho Balbuena era outro a rumar ao rival Racing em 1976 (assim como El Negro Ruiz Moreno); seu lugar na ponta agora era sobretudo de Daniel Astegiano, ou por vezes de Víctor Arroyo. O triangular-semifinal reservou encontros com River e Peñarol. O Rojo parecia certo em nova final ao começar segurando o 0-0 em Núñez seguindo de vitória em casa por 1-0 no Peñarol, ainda mais diante da vitória uruguaia de 1-0 sobre o River em seguida.

Só que o Millo acordou: mesmo em Avellaneda, os vizinhos venceram por 1-0 e depois sapecaram um 3-0 nos uruguaios. Ainda assim, o Rey de Copas mostrou-se vivo ao voltar do Centenário com um triunfo valoroso de 1-0, forçando um jogo-extra contra o River em 16 de julho. A missão se complicou com a expulsão de Galván aos 7 do segundo tempo. Mas a queda do trono demorou até os 40 para se confirmar, quando Pedro González anotou o único gol, colocando La Banda Roja na final e decretando a noite mais triste da carreira de Pavoni, segundo o próprio. 

Santoro e Pavoni eram os únicos remanescentes do Independiente campeão da Libertadores nos anos 60 a seguirem no ciclo dos anos 70. O goleiro ficou até a metade do tetra seguido e o xerife ficou em toda a série, não escondendo o choro quando ela terminou

Pavoni contou ao La Nación em 2018 que com a eliminação, “disse a Roberto [Perfumo]: te passo a luta pela Libertadores, queiram-na, respeitem-na, é grande demais”. Ciente do fim de um ciclo, seu choro não foi ocultado à revista El Gráfico: “o desconsolo de uma derrota que em sua valoração é a ‘guerra perdida e não uma simples batalha’, El Chivo Pavoni com lágrimas e nostalgia nos olhos. Buscando no chão do vestiário imagens que já não voltarão. Talvez seja seu adeus definitivo a La Copa. Essa velha amiga que se foi”, começava a legenda da foto a registrar os soluços do uruguaio.

“Mas nenhum dos dois sentirá a doença do esquecimento. Nem El Chivo se esquecerá de La Copa, nem La Copa se esquecerá do Chivo. Foram muito amigos. E assim ficaram registrados na história. Quase como uma mesma coisa”. Um mês depois, Pavoni voltava às lágrimas, mas felizes. A disputa da Copa Interamericana válida por 1975, tal como a de 1972, arrastou-se para o ano seguinte. Tempo suficiente para o Independiente trocar novamente de técnico, chamando para a função o recém-aposentado Pastoriza. Ele manteve a base quase finalista da Libertadores, exceção a nova oportunidade a Carlos Gay no lugar de Quiroga. A neutra Venezuela receberia os dois jogos entre o campeão sul-americano de 1975 e o da Concacaf.

O adversário seria o Atlético Español, nome na época do atual Necaxa e que fizera o Transvaal amargar um bivice no outro torneio das Américas – nos tempos finais de força do futebol da Guiana Holandesa, cuja independência justamente em 1975 se daria de forma que obrigava legalmente os nativos a escolherem entre a cidadania surinamesa ou a da metrópole; a impossibilidade de manter as duas persistiu por lei no Suriname até 2019, inviabilizando por décadas que sua seleção pudesse se fortalecer com os craques de origem local que nasceram ou cresceram na Holanda.

Em 26 de agosto, os mexicanos fizeram jogo duro: não só estiveram duas vezes à frente do placar (com destaque para Trossero empatar em 1-1 no minuto seguinte ao primeiro gol rival, mesmo que aos 45 do primeiro tempo) como lesionaram Astegiano e Soria. Mas só Rojas foi expulso, aos 21 da segunda etapa. O 2-2, com o jogo ainda em 1-1, ofuscou jogadaça de Bochini onde o maestro passou por seis adversários antes de acertar o travessão. Lance que renderia uma caça a El Bocha, outro desfalque para a revanche dali a três dias. Substituído na ida por José Lencina, Soria pôde recomeçar entre os titulares na volta. Astegiano, não.

Bertoni foi improvisado como centroavante junto a Arroyo e César Brítez, enquanto o zagueiro Carrica foi remendado na vaga de Bochini na armação (!). Os argentinos se conformaram em empatar, forçando os pênaltis. Conseguiram fazer o 0-0 prevalecer. E a figura de Carlos Gay voltou a prevalecer na hora dos penais, agarrando a segunda (de Juan Rodríguez Vega) e a quarta (de Juan Manuel Borbolla) enquanto Pavoni, Bertoni, Soria e Arroyo cumpriam seus serviços. As lágrimas de Pavoni agora continham alegria pela despedida digna. O uruguaio estenderia a carreira naquele lucrativo futebol colombiano, no Santa Fe – recusando uma proposta do Boca similar à feita para Sá, que teria lhe indicado. Justificou em 2018 ao La Nación que, no futebol argentino, ele só poderia jogar no Rey de Copas original: “seguiremos sendo nós, porque ganhamos isso nos anos 70”.

Sem a Libertadores à vista em 1977, o Independiente tratou de centrar fogo nos torneios domésticos. Por apenas dois pontos, foi vice do Metropolitano, mas pôde ter sua catarse no Nacional, que rendeu a mais épica final do futebol argentino. Ainda que fosse preciso aguardar nove longos anos (para a torcida mal acostumada) para comemorar-se diante do Grêmio o sétimo e ainda último título em La Copa, com o maestro Bochini e o técnico Pastoriza sendo os campeões continentais remanescentes, guarnecidos pela tardia dupla defensiva de 1976, Trossero e Villaverde. Mas isso já é outra história, retratada neste outro Especial.

Reforço de peso na comitiva do Independiente rumo ao Maracanã para a final da Sul-Americana 2017, contra o Flamengo: Bochini, Bertoni, um Santoro bem conservado e tingido aos 75 anos e Pavoni acompanham o riso aberto do técnico Ariel Holan

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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