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Com V de Vélez e S de Sarsfield: 30 anos sem Victorio Spinetto, maior técnico do Fortín

“Possivelmente, o personagem com maior influência na história futebolística do Vélez e um dos que mais relevância tiveram também na do futebol argentino”, defende o Diccionario Velezano, publicado em plena Era Carlos Bianchi (em 1996) sobre quem dirigiu o clube por 625 jogos. Seu autor, o historiador Esteban Bekerman, continua a defender que Victorio Spinetto é o técnico ideal para um hipotético time dos sonhos do Vélez – até para desafogar Bianchi do posto de jogador-treinador. Pensamento que compartilhamos no primeiro dia desse 2020 para celebrar os 110 anos do Fortín. Que, há 30 anos, chorava a perda de um prócer que soube se fazer querido inclusive em rivais.

Nascido no bairro de Flores como mais velho de três irmãos, cresceu na cidade de Bernal e com isso começou em 1924 no clube local do Honor y Patria, campeão da segunda divisão de 1929, até mudar-se ao bairro portenho de La Paternal – que abrigava um clube homônimo além do tradicional Argentinos Jrs. Ali, integrou o elenco que venceu a terceira divisão de 1930 e disputou a segunda divisão amadora de 1931, ano em que os dezoito principais clubes do país se dissociaram da associação oficial perante a FIFA. O movimento terminou por inaugurar oficialmente a era profissional do futebol argentino.

O La Paternal não passou do décimo lugar na segundona de 1931, mas Spinetto terminou profissionalizado em 1932 pelo Platense – inclusive marcou um gol pela camisa marrom em empate de 1-1 com o Racing (que terminou exatamente a um ponto do título) dentro de Avellaneda, pela oitava rodada. Mas, sem continuidade no Calamar, onde só somou três partidas, passou ao Vélez ainda durante aquele campeonato já perto do fim da janela de contratações. Estreou na vigésima rodada, em pleno clássico com o Ferro Carril Oeste, vencido por 3-0. E já na seguinte marcaria seu primeiro gol como velezano, fechando um 2-0 como visitante contra o Quilmes.

A fase credenciou Spinetto um lugar na seleção da liga, que usava uma camisa branca com golas verdes, cor presente também em frisos nos meiões pretos. Anos depois, quando a associação argentina oficial perante a FIFA rendeu-se sucesso da liga rebelde, absorvendo-se por ela em 1935 (infelizmente, já após a Copa de 1934, onde só amadores foram enviados à Itália – junto do massagista Chichilo Sosa, nome histórico do próprio Vélez e da seleção nessa função), os jogos desse combinado da liga acabaram convalidados como partidas oficiais da Argentina.

Vélez de 1933, ainda com a camisa “italiana”: o técnico Boffi, Spinetto, Alfredo Curti, Manuel de Sáa (que reforçou o America-RJ em 1934), Oscar Sciarra e o futuro flamenguista Agustín Cosso; o massagista Chichilo Sosa, Osvaldo Reta, Iván Mayo, Carlos Querzoli, Napoleón Seghini e Carlos Maggiolo

Spinetto só não entrou em campo, seja pela Albiceleste, seja por aquele uniforme alternativo. Mas compôs a delegação que no início de 1933 conseguiu a primeira vitória dos hermanos sobre o Uruguai dentro do estádio Centenário, vide imagem abaixo. Se ele não virou figurinha carimbada na seleção, passaria basicamente o restante da década em Villa Luro, que era o bairro do Vélez  na época. Nos três primeiros torneios com ele, o Vélez chegou no máximo ao sétimo lugar – em 1933, ano em que a icônica camisa com La V Azulada foi adotada, substituindo a tricolor “italiana” similar ao manto do Fluminense. Mas em seus domínios o clube mostrou-se praticamente inexpugnável, rendendo no mesmo período outro símbolo, o apelido de Fortín para a cancha de Villa Luro (dado ainda em 1932, justamente, pelo jornalista Hugo Marini; o clube só perdera duas vezes em casa, o que se repetiria em 1933).

Em 1934, uma campanha de meio de tabela pôde guardar a maior goleada até então no Clásico del Oeste, um 6-0 onde o volante deixou dois gols no Ferro Carril Oeste. Essa rivalidade perdeu muito do valor com a discrepância de troféus descomunal surgida nos anos 90, mas mesmo antes não tinha tanto calor. Em parte, porque o Ferro historicamente definiu-se como uma instituição poliesportiva, priorizando distribuir sua força entre suas diversas modalidades e em suas elitistas instalações sociais ao invés de centralizar tudo em seu time de futebol.

No Vélez, esse mesmo pensamento era pregado pelo único personagem a rivalizar com Spinetto em dedicação: o austeramente honesto cartola José Amalfitani, que já tinha na ocasião vinte anos de idas e vindas na gerência e terminou por distanciar-se momentaneamente nos anos 30 exatamente por desavenças internas. É que o Vélez, mesmo com campanhas de meio de tabela, mantinha uma crescente realidade superavitária desde 1932, quando parte dos três mil sócios já vinham buscando até separar o time de futebol da instituição social – enquanto outra defendia a unidade que permitisse um crescimento sustentável do conjunto.

A campanha de 1935 empolgou em especial aqueles primeiros: com Spinetto deixando os deles contra os gigantes Racing e San Lorenzo, o clube ampliou seu próprio recorde contra o Ferro (registrando um 7-0 que permanece como maior goelada do dérbi), foi totalmente invicto em Villa Luro e saltou para um quarto lugar, além de ter em Agustín Cosso seu primeiro artilheiro de liga profissional. Os três mil sócios de 1932 já eram 7 mil.

O combinado que deu a primeira vitória argentina no estádio Centenário: Spinetto, Santamaría (depois jogador de Fluminense e Botafogo), José González, Bello, Cuello, Minella, Bosio, Wergifker, De Jonge e o massagista Chichilo Sosa; Tomás González, Varallo, Naón (Flamengo), Sastre (São Paulo), Arrieta, Cusatti (Fluminense), Moyano e Peucelle

Em 1936, houve dois campeonatos argentinos, ambos de turno único. No primeiro, com Spinetto registrando três gols, o Vélez repetiu a quarta colocação, a seis pontinhos de um título ainda inédito. No segundo, o volante dobrou os gols para seis, incluindo em um 4-1 no Independiente e dois em 8-1 no Tigre. Mas o Fortín despencou para 13º de 18 equipes, instalando uma crise que permearia pelo resto da década, mesmo que ela inicialmente não se refletisse em campo. Pois em 1937 os fortineros terminaram em quinto, com seu líder ganhando especial destaque em duelo contra o Chacarita, que abriu 2-0 em Villa Luro e terminou derrotado por 5-2 após Spinetto marcar simplesmente quatro gols – e apenas um foi de bola parada, o primeiro, convertendo um pênalti.

O segundo veio em jogada individual e o da virada veio de cabeça. Com o jogo já em 4-2, anotou o último entrando com bola e tudo. Naquela tarde iluminada, ele terminou aplaudido pelos próprios adversários enquanto era carregado nos ombros dos colegas: foi o primeiro jogador de defesa a marcar quatro gols em um só jogo de que se tem registro na liga argentina. Além daquele poker, o volante-artilheiro ainda somou outros sete gols na campanha, incluindo em um 6-4 no vice Independiente.

O clube de Avellaneda tratou de contrata-lo para o torneio seguinte. Tinha tudo para ser um momento especial: dois de seus maiores ídolos haviam se destacado no Rojo, segundo depoimento que ele dera já nos anos 70 à revista El Gráfico, da qual era leitor assíduo na juventude. Ele contou na ocasião que ao começar a jogar futebol “queria chegar a ter a personalidade de Luis Monti, o senhorio de Adolfo Zumelzú, a maestria do Nolo Ferreira, o disparo de Raimundo Orsi, a tenacidade e impulso de Alfredo Carricaberry, o vigor com quem Manuel Seoane apurava as defesas contrárias, tanto por cima como por baixo. Aquela juventude me serve para explicar tanta ambição. Porque era humanamente impossível que em mi pudessem reunir todas as características de quem eu admirava”.

De todos esses nomes, apenas o de Seoane não havia figurado nos vices mundiais Olimpíadas de 1928 e/ou na Copa de 1930, mas era ele o maior artilheiro do Independiente até então, enquanto seu ex-parceiro Orsi vencera a Copa de 1934 pela Itália. O volante foi negociado por 12 mil pesos. E em 1938, o Independiente não só foi campeão como encerrou doze anos de jejum. Mas o casamento com o reforço não deu tão certo assim, com seu estilo combativo não se encaixando em um ambiente que prezava pelo jogo plástico.

No Independiente campeão de 1938: Antonio Sastre (depois ídolo no São Paulo), Fermín Lecea, Spinetto, Fernando Bello, Celestino Martínez (depois jogador do Fluminense) e Sabino Coletta (depois beque do Flamengo); José Vilariño, Vicente de la Mata, Arsenio Erico, Emilio Reuben (outro futuro flamenguista) e Marcelino Funes

Spinetto ainda contribuiu humildemente com três gols, mas admitiu: “ali, sei que jogava bem. Mas o que me acontecia? Que eu ficava olhando como esses gênios de Sastre, Celestino Martínez… e como um bobo me anulei, deixei de ser eu”. Em 1939, ele já estava de volta ao Vélez. O passo breve por Avellaneda, contudo, não o impediu de guardar amizades profundas dali – a ponto de fazer questão de, já regressado ao Fortín, revidar naquele ano alguém do Estudiantes que em 1938 havia arrancado três dentes do goleador rojo Arsenio Erico

A desforra foi completa por Spinetto também marcou os dois gols de um 2-1 dentro de La Plata sobre os alvirrubros. O ídolo ainda guardou no 1-1 em clássico com o Ferro e em 2-2 como visitante sobre o ex-rival Racing. Mas no restante do torneio, o Vélez repetiu o décimo lugar de 1938 – ano em que o livro de balanço já se preocupava: “para nosso clube a sede social tem sido nos últimos anos um negócio tão ruim que tem arrojado uma perda mensal quase invariável de $ 800 a $ 1000”. Não por acaso, além de ter negociado Spinetto com o Independiente, em 1938 o time também se desfizera de seu artilheiro Cosso para o Flamengo.

O prejuízo institucional reforçou quem defendia a separação do time de futebol. Testou-se para 1939 uma autonomia provisória, que não solucionou o declínio que se via em campo. Em 1940, Spinetto marcou três gols; o mais recordado deles foi em uma movimentada vitória de 5-4 sobre o Independiente, justamente, pela 29ª rodada. Aquele foi justamente o último gol do volante, que na elite profissional acumulou 44 em 210 jogos. Com isso, liderou por muito tempo a lista de goleadores entre os jogadores da retaguarda, até ser superado nos anos 60 inicialmente por José Rafael Albrecht – ele próprio um dos vinte maiores zagueiros-artilheiros do futebol a nível mundial.

Os ex-colegas àquela altura lutavam por um inédito tricampeonato seguido no profissionalismo, enquanto os velezanos brigavam para não cair. Na 32ª rodada, o título garantiu-se matematicamente para o Boca. Restavam duas rodadas e na última o Fortín escapava do descenso mesmo perdendo em casa para o San Lorenzo, desde que o concorrente Atlanta não vencesse o Rojo.

Quase cortado como primeiro em pé no Vélez campeão da segunda divisão de 1943, com o macacão com a letra E de “entrenador”. Ao meio, de preto, o goleiro Miguel Rugilo, que passaria pelo Palmeiras. O último em pé é outra vez o massagista Chichilo Sosa

O Atlanta venceu por 6-4 em um duelo marcado por suspeitas de entrega por parte do Independiente como um troco por aquela derrota, sensação reforçada quando o Atlanta semanas depois cedeu sem custos seu melhor jogador ao adversário (José Battagliero). Na via oposta, o livro de balanço velezano de 1940 registrava que “o San Lorenzo queria levar Fernando García e alguns nos propunham negocia-lo pelos pontos dessa partida. Mas isso não era um proceder digno. Os dirigentes de 1940 perdemos a categoria, é certo, mas salvamos a honra do Vélez”. Nada que fosse bastante para conter o êxodo de sócios, que voltavam a ser 3 mil. Ou as dívidas, que levaram o clube a ser despejado de seu terreno alugado de Villa Luro.

Os sócios já voltavam a ser 3 mil, as dívidas batiam na porta e o passo seguinte foi ser despejado do terreno de Villa Luro, que era alugado. Quem acreditou em um clube à beira da extinção foi Spinetto, que seguiu para a segunda divisão. E, sobretudo, o cartola Amalfitani, que voltou para ser presidente a partir de 1941 até falecer quase trinta anos depois. O time não se saiu mal em um primeiro ano de segundona, mas o quarto lugar não bastava em tempos onde só o campeão (o Chacarita, justamente o outro rebaixado de 1940) subia.

Para 1942, Spinetto inicialmente foi defender o Acasusso, outro time da segundona. Mas após apenas duas partidas por lá, foi convocado por Amalfitani para tornar-se técnico de um Vélez ainda sem casa nova pronta – o terreno pantanoso em Liniers, solução encontrada pelo presidente, ainda vinha sendo trabalhado. A campanha foi novamente boa sem ser o bastante: terceiro lugar, a distantes doze pontos do campeão Rosario Central. Mas para 1943 o Fortín de Liniers estava pronto. E o aguardado título com acesso veio com sobras, a sete pontos do vice (o Unión) em tempos em que as vitórias valiam dois pontos e não três. Só o único ainda incaível, o Boca, segue ininterruptamente há mais tempo na primeira divisão.

Já convertido em Don Victorio, Spinetto até diria inclusive que o rebaixamento fora positivo ao sedimentar uma gama de dirigentes sem vaidades para tirar o time da ruína. Ele seguiria firmemente como técnico velezano até os inícios de 1954: nenhum outro treinador permaneceu por dez anos seguidos à frente de um clube na primeira divisão argentina. Disputar o título foi um sonho distante, mas o ano de 1945 rendeu uma doce vingança de 8-0 sobre o Independiente e o ano de 1946 registrou um 6-0 como visitante no clássico com o Ferro e a partir de 1947 o Fortín emendou três torneios seguidos na metade superior da tabela. Inclusive, entre 1949 a 1953 soube vencer o Boca na Bombonera por três vezes após ter perdido 15 das 16 ocasiões anteriores onde foi visitante dos auriazuis.

Os vices de 1953: Spinetto é o primeiro em pé junto a Armando Ovide, Nicolás Adamo, Oscar Huss, Ángel Allegri, Jorge Ruiz e Rafael García Fierro; Ernesto Sansone, Norberto Conde, Juan José Ferraro, Osvaldo Zubeldía e Juan Carlos Mendiburu

Na nova década, então, o sexto lugar a oito pontos do campeão River em 1952 foi sucedido pelo vice-campeonato a quatro pontos do mesmo clube em 1953. Um detalhe esquecido é que no duelo direto o Fortín abriu o placar mas ainda no primeiro tempo teve dois jogadores expulsos. O concorrente igualou, mas La V Azulada se pôs à frente aos 43 do segundo tempo – mas foi a vez do autor do gol, Juan Carlos Mendiburu, terminar expulso por atrasar o reinício. Restavam poucos minutos para os velezanos sustentarem com oito homens um triunfo que os colocaria na liderança, mas Oscar Mantegari conseguiu arrancar o empate validado mesmo fazendo falta no goleiro. Pelos protestos contra a arbitragem, dois jogadores fortineros receberam seis rodadas de suspensão e outro, duas, dificultando a perseguição.

Expulsões, inclusive, eram a crítica principal ao trabalho de Spinetto, que era sancionado além da conta – nada compreendido por árbitros e jornalistas em tempos em que treinadores viviam mais passivamente as partidas, sentados em seus bancos, enquanto Don Victorio espantava a todos ao portar-se com gestos e gritos à beira do campo. Uma de suas expulsões foi resgatada pela El Gráfico em nota póstuma em 1990: expulso pelo árbitro inglês Harry Hartles, Spinetto, que vivia a duas quadras do estádio velezano, se dirigiu ao lar e assim que saiu do banho foi comunicado pelo filho de que o juiz precisara sair escoltado de lá rumo à estação ferroviária. O treinador foi ao seu caminho para convida-lo a tomar chá. O juiz, de início receoso, passaria toda a noite na casa dos Spinetto.

A sensação de que o título poderia ter vindo em 1953 não amargou o presidente Amalfitani (que ainda em vida foi homenageado com seu nome designando oficialmente o estádio em Liniers), que exaltou os dez anos de Spinetto no livro de balanço daquele ano, deixando ainda a mensagem de que: “a obtenção de um campeonato não é pretensão a qual não aspire o clube, a condição de que se admita de que não é essa a única fundamental ambição, e sim é ela a triunfante consequência de seu total valor institucional, determinado por realidades permanentes e em contínua evolução progressista. Bem vindo o auspicioso título, mas trate de buscar-se nele a influência de outras sugestões que não sejam as do mero triunfo desprovido de conteúdo essencial”.

Don Victorio atendia em parte a essa ordem. Com efeito, seu perfil no Diccionario Velezano descreve que “seu trabalho se viu recompensado pela grande quantidade de figuras que surgiram à mercê de seu olho clínico, como Rugilo, Ferraro, Ovide, Allegri, Jorge Ruiz, Rafael García, Zubeldía, Conde, Sansone e Carmelo Simeone em sua primeira etapa como treinador velezano e José Miguel Marín e Carlos Bianchi em um dos muitos regressos ao Fortín que protagonizou para dirigir o time adulto ou as inferiores. Se por algo pôde converter-se em um símbolo do Vélez, não obstante, foi por essa personalidade ganhadora que tanto jogando como dirigindo logrou infundir em suas equipes, a ponto de definir um estilo futebolístico talvez pouco agradável à vista, mas definitivamente indispensável para pôr futebolisticamente o clube à altura dos mais poderosos”.

A Argentina campeã da Copa América de 1959 sobre Pelé: Varacka, Griguol, Griffa, Murúa, Negri, Bertoldi, Nuín, Sosa, Cardoso e Cap; Mouriño, médico Héctor Venturino, preparador Adolfo Mogilevsky, os técnicos Spinetto, Della Torre e Barreiro, massagista Ildefonso Martínez, roupeiro Simon Straiman e Manfredini; Belén (cortado), Simeone, Brookes, Rodríguez, Corbatta, Nardiello, Güenzatti, Lombardo, Pizzuti e Callá

Só que em 1954 o time vice-campeão caiu para nono e em 1955 brigou para não cair. Spinetto ainda seguia em Liniers no início de 1956, mas mudou de ares quando a temporada começou. Ironia histórica: foi treinar o Atlanta na segunda divisão. Foi uma edição especialmente concorrida da segundona, que tinha ainda Estudiantes, Argentinos Jrs e a dupla santafesina Unión e Colón brigando pela única vaga de acesso. O novo clube de Spinetto terminou em quarto ali e em 1955, anos de títulos e acessos de Estudiantes e Argentinos, respectivamente. Os frutos começaram a aparecer em 1956: o Bohemio venceu a Primera B com sete pontos de vantagem para o vice e saltaria para o auge de sua história.

Após focar em salvar-se de nova queda em 1957, ano em que o treinador destacou que “em qualquer coisa que eu faço, ponho minha vergonha”, o clube de Villa Crespo emendaria campanhas se intrometendo entre os cinco primeiros a partir de 1958, quando terminou em quarto. O ano de 1958 também iniciou a campanha da principal conquista do Atlanta, a Copa Suécia, em caminhada percorrida na maior parte sob o trabalho de Spinetto, que dizia: “me deem um conjunto de homens que se respeitem e sintam afeto entre si e farei uma equipe moralmente indestrutível”. Por problemas de calendário, a semifinal só ocorreu em 1959 e a final, em 1960, quando ele já estava em outro ambiente: o da seleção argentina, que vinha de um vexame estrondoso na Copa do Mundo de 1958.

Spinetto não chegou a assinar contrato com a AFA e não cobrou salários, se contentando em remunerar-se com os bichos. Conseguiu um paliativo ao orgulho argentino ferido ao preparar, em triunvirato com José Barreiro e José Della Torre e com a escuderia do inovador preparador físico Adolfo Mogilevsky (outro oriundo daquele Atlanta) a seleção campeã da Copa América de 1959 sobre um Brasil recém-campeão mundial – foi inclusive o último título da Albiceleste no torneio até 1991. A ausência de um contrato formalizado fez com que a Era Spinetto na Albiceleste não fosse contínua; na outra Copa América realizada naquele ano, o treinador foi o antigo astro José Manuel Moreno, mas Don Victorio (que ainda voltou rapidamente ao Atlanta naquele ano como interino) ainda foi convidado para trabalhar na Taça do Atlântico de 1960 e nas eliminatórias à Copa de 1962.

A classificação ao Chile veio, mas uma pouco exitosa excursão à Europa e a não-aceitação de interferência de cartolas na escalação o fez deixar o cargo pelo qual venceu dez vezes, empatou quatro e perdeu somente duas (contra Itália e Espanha, naquela gira). O treinador no mundial seria Juan Carlos Lorenzo enquanto Spinetto, ainda em 1961, retornou brevemente ao Vélez – passagem onde teve o mérito de promover a vinda de um jovem Daniel Willington (futuro maestro do primeiro elenco fortinero campeão da elite, em 1968) junto ao Talleres, já no início de 1962. Mas o treinador não permaneceu para o restante da temporada: fechou o ano tendo regressado ao bairro de La Paternal, agora empregado pelo grande representante local, o Argentinos Jrs.

No Huracán, sua vibração não contagiou. Mas no Atlanta era recebido sob aplausos perfilados. No Ferro, seu desempenho só foi ofuscado pela ligação extrema com o rival Vélez

Seu primeiro ciclo no Bicho não foi tão exitoso, com duas campanhas na rabeira da tabela, embora sem a ameaça do descenso. Mas Spinetto seguia com renome para ser requisitado por um gigante adormecido feito o Huracán. Não transcendeu em Parque de los Patricios, cujo clube padecia de crise de grandeza já havia vinte anos e terminou em nono, só ganhando um duelo contra algum dos grandes, mesmo que de 1-0 sobre o Independiente campeão da América. Em 1966, ele refez seu nome em um último regresso ao time adulto do Vélez, quinto colocado. Em 1967, o Fortín foi terceiro em seu grupo no Metropolitano, perdendo por dois pontos a vaga nos mata-matas: calhou de concorrer com o campeão Estudiantes e com um Racing que em paralelo ganhava a América e o mundo. Estudiantes que era treinado por Osvaldo Zubeldía, antigo pupilo de Don Victorio no Vélez e no Atlanta, empregando em La Plata muito da astúcia defendida pelo mestre.

Essa ligação de herança não se limitou à aquele momento. Não é raro creditar indiretamente a Spinetto até o título da Argentina na Copa de 1986, pois o treinador de então da seleção, Carlos Bilardo, era por sua vez herdeiro do pragmático resultadismo de Zubeldía – conclusão feita até pela mídia britânica. Mais concreto é que o Vélez ainda foi terceiro também na tabela geral do Torneio Nacional de 1967, mas o grande mérito de Spinetto naquele ano foi promover aos adultos o futuro maior goleador do clube: o jovem Carlos Bianchi. Em 1968, ele voltou a um Atlanta que já não lembrava o clube forte que o Bohemio pudera ser até desmanchar-se de vez ao fim de 1964. Em Villa Crespo, Spinetto também viria a ser o técnico com mais jogos na primeira divisão (205), conseguindo manter os auriazuis na elite ao fim da temporada – e fazendo a alegria deles mesmo na estreia pelo clube seguinte, o Lanús.

O técnico chegou aos grenás em 1969 e começou sapecando um 7-1 no Chacarita, o tradicional rival do Atlanta. A ironia é que meses depois o campeão do Metropolitano de 1969 seria o próprio Chaca… O Lanús surfava em um celebrado elenco apelidado de Los Albañiles, eliminados nos critérios de desempate na vaga aos mata-matas de 1968 e que ainda manteram a toada sob o novo treinador – o time foi sexto em seu grupo no Metropolitano de 1969, o suficiente para pegar a última vaga para o Torneio Nacional. Em 1970, o Atlanta lhe requisitou de volta. E Spinetto reforçou a idolatria em Villa Crespo com um sétimo lugar no Metropolitano, a cinco pontos do campeão Independiente. Na via oposta, o Racing, desfalcado de seu comandante Juan José Pizzuti para a seleção, fizera sua pior campanha até então na elite: 11º. La Academia então buscou em Don Victorio seu quarto técnico naquele ano.

Após ser bombeiro em Avellaneda, ele voltou ao Atlanta no primeiro semestre de 1971. A três pontos da degola no Metropolitano, o Bohemio deveu muito ao comandante para não ter caído. O Racing, que repetiu o 11º lugar, voltou a chama-lo – Spinetto, dessa vez, foi o terceiro treinador racinguista no ano. La Acadé terminou na metade inferior da tabela no Torneio Nacional e o treinador foi atrás de tranquilidade no Argentinos Jrs em 1972. Destacou-se no Nacional, onde o no primeiro, o Bicho ficou em terceiro em seu grupo. Para 1973, após estacionar o Argentinos em 10º no Metropolitano, o cenário foi um Ferro Carril Oeste que terminara na lanterna, beneficiado por não haver rebaixamento naquela edição.

O último grande trabalho de Spinetto foi no Argentinos Jrs maradoniano em 1978. Dieguito é o agachado à frente dos demais na foto esquerda. A outra foi tirada do próprio instagram de Maradona

A simbiose Spinetto-Vélez foi tamanha que ofusca seu grande trabalho à frente do rival. Pois a enciclopédia Ferro 100 Años diz com todas as letras que Don Victorio foi o maior técnico verdolaga abaixo de Carlos Griguol (por sinal, antigo aprendiz de Spinetto no Atlanta nos tempos de jogador), o único que pôde levar o clube de Caballito a títulos na primeira divisão (em 1982 e em 1984). Spinetto permaneceu seguidamente no Ferro até 1976. O clube saltara para um 3º lugar em seu grupo no Metropolitano de 1974, impedido de avançar ao quadrangular final após perder o jogo-extra para o Boca. No Nacional, a classificação ao hexagonal final veio.

As campanhas seguintes foram menos empolgantes, gradualmente decrescentes até a luta contra o rebaixamento no Metropolitano de 1976 encerrar um ciclo celebrado. Para 1977, Spinetto voltou a virar a casaca, assumindo o Chacarita. Não transcendeu tanto como funebrero, mas cavou retorno ao Argentinos Jrs para polir a sensação Maradona. Dieguito já havia estreado pela seleção, mas foi sob o olho clínico de Spinetto que explodiu, conseguindo sua primeira artilharia na elite argentina – e, com isso, um 5º lugar no Metropolitano de 1978. No Nacional, porém, o Bicho murchou momentaneamente para a vice-lanterna do Grupo C.

O treinador seguiu então trabalhando no Atlanta em 1979, conciliando o cargo do elenco principal e do juvenil. Mas o Bohemio já não desfrutava da mesma solidez de outrora: o velho ídolo só durou nove jogos após somar apenas quatro pontos neles, em temporada que resultaria em rebaixamento. Spinetto ainda trabalharia na segunda divisão, mas no Defensores de Belgrano entre 1981 (a três pontos da degola para a terceira) e 1982 (perdendo nos critérios de desempate a vaga nos mata-matas), antes de voltar ao Vélez para dedicar-se exclusivamente à formação de juvenis.

Poliu parte substancial da garotada que anos depois triunfaria na Era Carlos Bianchi, embora não vivesse para saborear esses frutos: uma insuficiência renal o levou naquele 28 de agosto de 1990. Vinte anos depois, um Fortín em patamar totalmente distinto celebrou seu centenário. A revista El Gráfico publicou uma edição especial na qual somente ele, Bianchi, José Luis Chilavert e Omar Asad foram contemplados com perfis próprios, e “roubamos” da nota dedicada a Spinetto o título empregado nesta. E também a conclusão usada: “Don Victorio estava casado com Ángela, com quem teve dois filhos. Odiava os jogadores de cabelo comprido, sentia paixão pelo futebol e, sobretudo, amigo leitor, era torcedor do Vélez”.

Outra com um jovem Maradona e polindo nos juvenis do Vélez um garoto Christian Bassedas, ícone dos dourados anos 90 do clube

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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