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Quilmes chora seu maior ídolo: a história de cinema de Omar “Indio” Gómez

Só um jogador do Quilmes foi três vezes campeão nacional com o clube – uma vez para cada divisão, incluindo a única conquista na elite profissional do Cervecero e outra em pleno centenário do time. Naturalmente, Omar Hugo Gómez, El Indio Gómez, tornou-se o maior ídolo quilmenho, além de primeiro jogador da equipe a nomear uma tribuna no estádio José Luis Meiszner. Ontem, aos 66 anos incompletos, enquanto o Brasil chorava por Paulo Gustavo, toda uma cidade se comovia por quem mais a fez sorrir: o talentoso meia de 49 gols em 279 jogos (é o terceiro com mais partidas no clube) tornou-se justamente mais uma baixa para a Covid-19.

O filho do casal Luciano Gómez e Argentina Monzón nasceu na própria Quilmes, em 3 de outubro de 1955. E, embora crescesse em um bairro mais próximo dos rivais municipais do Cervecero – o Tiro Federal, e sobretudo, o Argentino de Quilmes –, sua primeira equipe mais séria após começar em jogos de rua foi um time de várzea chamado Siete Estrellas. Tinha doze anos e lá foi descoberto por um olheiro do principal time da zona.

Ao livro Azul y Blanco de Mi Corazón, Gómez relembrou sobre seu primeiro teste que “faltava um lateral-esquerdo. Disse: ‘eu’. Não ficava de fora nem bêbado. Fiquei como segundo zagueiro central e estreei no torneio nesse posto. Contra o Banfield, no juvenil. Quis sair jogando duas vezes e perdíamos de 2-0. No intervalo, me mandaram ser meia-direita. Empatamos 2-2 com dois gols meus. Assim começou minha história no clube”.

Os amigos de bairro logo trataram de preservar aquele garoto franzino, deixando de convida-lo para as ríspidas partidas de várzea. Gómez enfim estreou no time adulto em 2 de março de 1974, pela quinta rodada da segunda divisão. Com a partida em 0-0 contra o Almirante Brown, o colega Oscar Rodríguez fraturou duas costelas aos 37 minutos de jogo. Casualidade: seu reserva imediato, Alberto Masip, havia se lesionado na véspera, o que abrira a brecha para Gómez ser inclusive relacionado à partida. O treinador Federico Pizarro então promoveu o debute da promessa. Foi pé-quente: o Cervecero ganhou de 2-0, gols de Richard García e de Ricardo Villa – futuro campeão com a seleção na Copa de 1978 e posterior herói no Tottenham Hotspur bi da Copa da Inglaterra nos anos 80.

Quilmes que venceu a 2ª divisão em 1975: Héctor Cigogna, Eduardo Carranza, Walter Mainonis, Pedro Gaño, Eduardo Casarino e Rodolfo Fucceneco; Miguel Filardo, Osvaldo González, Omar Gómez, Miguel Cottón e Ricardo Lupo.

Mas Gómez foi, sobretudo, bem avaliado pela estreia. Permaneceu titular nas rodadas seguintes e já em 23 de março marcou seu primeiro gol, em derrota de 2-1 para o Arsenal em Sarandí. Ao fim de 1974, registrou 29 partidas na campanha, abaixo apenas do lateral-esquerdo Carlos Montenegro. Foi usado ainda como atacante (embora só marcasse três gols) e herdou a camisa 10 tão logo a joia Ricky Villa foi repassada ao Atlético Tucumán.

O Quilmes fez na realidade um campeonato medíocre, na metade inferior da tabela de ambos os turnos. Mas a nova promessa foi logo contemplada com vale-transporte e treinos específicos de fortalecimento corporal. Atitude recompensa de imediato: em 1975, o Cervecero liderou a Primera B de ponta a ponta, garantindo o título e o acesso com três rodadas de antecipação, em um 4-2 no Comunicaciones onde o craque ficou recordado por uma bela assistência para Jorge Kaliszuk concluir depois que três adversários haviam sido deixados no chão por El Indio – que foi, sobretudo, o artilheiro do elenco campeão, mesmo não sendo propriamente um atacante; foram treze gols nas 35 partidas em que atuou dentre as 38 da campanha, entre pênaltis (já era o cobrador oficial), cobranças certeiras de falta, bombas de fora da área ou toques sutis nas saídas de goleiros.

Tamanha foi a importância que a diretoria chegou a requerer uma desconvocação para a seleção sub-20, que naquele ano disputaria no Peru o Sul-Americano da categoria. Em 1976, então, Gómez notabilizou-se na elite argentina por diferentes motivos: foi um dos precursores das chuteiras brancas (que já vinha usando por superstição desde a campanha da segundona após uma exibição com dois gols sobre o Nueva Chicago): foi pela sexta rodada, em 3-2 sobre o Racing, embora a ousadia lhe custasse uma tarde de pancadas que, por outro lado, cavaram o pênalti que rendeu em um dos gols – mas ele ainda assim abandonaria a moda por medo de lesões sérias; ou por abrir a contagem de gols no regresso quilmenho à primeira divisão, em um 1-1 com o Unión, além de vazar também o River em um categórico 3-1.

Mas El Indio sobressaiu-se sobretudo por reger uma campanha além das expectativas de quem se contentava em fugir do rebaixamento no Metropolitano. É que o Quilmes terminou a fase de grupos a um ponto da liderança, classificando-se ao dodecagonal que decidiria o título – onde terminou em sétimo, mas a quatro pontos do pódio, e isso que uma contratura muscular desfalcou no grosso daquela fase os azarões de sua grande revelação. Ainda assim, o sétimo lugar geral era a segunda melhor campanha da humilde história cervecera na elite profissional, abaixo apenas do quinto lugar no Nacional de 1969, quando o time ainda tinha no gol o jovem Ubaldo Fillol. O Boca bem se interessou por Gómez, mas ele desgostou da proposta financeira só contemplar pagamento de luvas ao clube e não a si.

Quilmes campeão pela última vez da 1ª divisão, em 1978: Alberto Fanesi, Bernabé Palacios, Horacio Milozzi, Jorge Gáspari, Guillermo Zárate e José Medina; Héctor Milano, Horacio Bianchini, Luis Andreuchi, Omar Gómez e Horacio Salinas

Teve mais no Torneio Nacional: os alviazuis ficaram em segundo em um grupo que tinha o líder Boca (recém-campeão do Metropolitano) e o Independiente (recém-tetra seguido da Libertadores). E isso que o desempenho individual de Gómez já foi avaliado como aquém das expectativas geradas – de fato, marcou só um golzinho e chegou a ser expulso contra Boca e Independiente. Nos mata-matas, foi a vez do River prevalecer em jogo único no campo neutro do Huracán. Gómez permaneceu, mas o bom momento clubístico no biênio 1975-76 causou um desmanche de peões a acarretar em uma briga contra o rebaixamento no Metropolitano de 1977. Ainda que o declínio generalizado se fizesse sentir após um recesso no torneio (para amistosos da seleção preparatórios à Copa de 1978, já que a anfitriã não disputava as eliminatórias) depois de 15 razoáveis rodadas iniciais.

Naquele Metro, El Indio contribuiu diretamente com seis golzinhos. Apenas dois pontos separaram o Quilmes dos degolados, mas a salvação estava garantida ainda antes da rodada final. A seleção estava no horizonte, mas em 23 de novembro de 1977 o ídolo fraturou o perônio em um 1-1 com o Boca, já no Torneio Nacional. Seriam quatro meses de estaleiro. Mas a tempo de ele estar de volta, e como titular, para a primeira rodada do Metropolitano de 1978.

De fato, Gómez atuou em oito das nove primeiras rodadas, mas, como todo o time, não se saía bem. A nona rodada foi um vexame: derrota para os novatos do Estudiantes de Buenos Aires que acarretou na queda da recém-contratada dupla técnica formada por Oscar López e Oscar Cavallero (pai de Pablo Cavallero, goleiro da seleção na Copa de 2002). O Cervecero tratou de trazer de volta José Yudica, o bombeiro que ajudara na luta contra a queda em 1977. Logo veio a parada para a Copa do Mundo, bem aproveitada pelo Quilmes, já em sexto lugar, para aprimorar-se.

Os cinco gols do meia viriam, simbolicamente, após a retomada – embora uma suspensão disciplinar de cinco partidas após uma expulsão tola contra o Estudiantes lhe custasse ritmo de jogo e a titularidade na parte histórica que consagrou o Cervecero campeão da elite pela segunda e última vez; e a primeira desde 1912, quando o clube ainda era fechado a uma comunidade britânica (o vizinho Argentino de Quilmes nascera justamente em função dessas restrições, criando-se assim a mais antiga rivalidade do país, não a ponto de impedir a devida trégua ontem: o Argentino fez questão de homenagear Gómez) nada disposta a abrir-se a quem tivesse fenótipo de índio. Novos tempos…

Comemorando o título de 1978 e homenageado como Ind10 no tributo póstumo do Quilmes

Mas a o auge não foi sustentável. Com jogador e clube precisando de dinheiro, acertou-se a venda de Gómez ao Dallas Tornado, representante da cidade texana tanto na NASL, a ambiciosa liga principal do soccer nos EUA naqueles anos, como também em torneios de futsal com o argentino. Gómez não ficou para a Libertadores de 1979, cuja preparação foi bancada exatamente pelo dinheiro que entrara em caixa por ele. Após cerca de uma no, ele foi repatriado pelo Newell’s, o novo clube do mestre Yudica. Inclusive, enfrentou o Quilmes pela terceira rodada, com os ex-colegas vencendo por 3-2.

A experiência rosarina foi breve: em 1980, o argentino retomou uma carreira paga em dólar no futsal do Wichita Wings, voltando ao Dallas Tornado para a NASL ainda em 1980 e regressando aos salões pelo New York Arrows (campeão em 1982) e novamente pelo Wings. Se financeiramente a decisão foi acertada, também lhe tirou de vez do radar da seleção argentina. Já tinha 30 anos quando voltou ao sul da Grande Buenos Aires, inicialmente em tempos pobres do Defensa y Justicia, da municipalidade de Florencio Varela, vizinha a Quilmes – embora a ideia inicial fosse curtir mesmo uma ociosidade possibilidade pelo pé-de-meia faturado com os ianques.

O Defensa havia acabado de sagrar-se campeão da terceira divisão de 1985, mas isso por si só não o garantiu diretamente na segunda divisão seguinte. É que a Primera B, então restrita oficialmente à Grande Buenos Aires, Rosario e Santa Fe, acertou sua efetiva nacionalização e programou uma transição no primeiro semestre de 1986, em um torneio que serviu de peneira para quem disputaria a temporada nacionalizada – a ser iniciada no segundo semestre, instituindo um calendário nos moldes europeus – e quem seria relegado à terceirona. Gómez contribuiu diretamente com um golzinho, no 3-1 sobre o Argentino de Rosario, fora de casa; o Halcón salvou-se com 21 pontos, dois acima dos degolados de uma embolada seletiva. Um dos rebaixados? O Quilmes, que naufragou na lanterna do outro grupo.

O meia ainda disputou o primeiro turno da segunda divisão de 1986-87 com os auriverdes, mas na pausa de fim de ano acertou o regresso à velha casa – que, mesmo com o histórico porte de clube ioiô, jamais havia descido até a terceira. O calendário dela também virou “europeu” com a temporada 1986-87 e restavam ainda doze rodadas. Em 31 de janeiro de 1987, ele não reestreou do jeito mais auspicioso: só durou 28 minutos, até ser expulso por troca de agressões com alguém do All Boys, vencedor por 2-1. E quando voltou da suspensão automática, se lesionou.

Quilmes campeão da 3ª divisão em pleno centenário, em 1987: Hugo Neira, Marcelo Ribichini, Héctor Cassé, Javier Orengo, Emilio Kalujerovich e Ricardo Mazariche; Omar Gómez, Daniel Leani, Omar Catalán, Alberto Pascutti e Juan Manuel Sotelo

Mas a história teve o final de cinema que merecia. Entre a 29ª e a 33ª rodada, o regressado Gómez anotou seus três gols na redentora campanha que não só devolveu instantaneamente o Cervecero à segunda divisão, como ainda serviu de troféu para marcar o ano do centenário do mais antigo clube argentino ainda em atividade. A 33ª, a penúltima, foi precisamente onde a festa pôde ser garantida com antecipação. Com El Indio fornecendo a assistência para o primeiro gol e anotando o segundo de um 3-0 sobre o Estudiantes de Buenos Aires, perseguidor direto (embora terceiro colocado no fim, ficou dois pontos abaixo).

O técnico Humberto Zuccarelli exaltou à revista Solo Fútbol que o veterano era “a cota de talento e de experiência da equipe. É o jogador que faz a pausa e serena toda a equipe. Põe toda a sua sabedoria a serviço da equipe e temos podido tirar muitos bons proveitos. Para alguns torcedores, El Indio é a imagem do Quilmes”. À revista El Gráfico, Gómez diferenciou o que era ser campeão de futsal nos EUA (“não significou mais que um prêmio em dinheiro e um jantar com minha esposa”) e vencer a terceirona argentina (“sou de Quilmes até os ossos, aqui nasci, aqui vivo e aqui me fiz jogador. Aliás, tem as pessoas, que gostam tanto de mim, que sejam que eu faça os gols, que seja a figura… por eles me mato em campo, para vê-los felizes”).

O adversário da rodada final, um Deportivo Merlo sem ambição na tabela, teria direito de mandar a partida em sua casa, mas foi sensível em ceder o mando de campo para que Gómez fosse homenageado com apoteose no estádio cervecero: chegou ao gramado de helicóptero. E seguiu animando o Quilmes em lutas ativas por novos acessos; o time caiu nas semifinais da temporada 1987-88 da Primera B para o San Martín de Tucumán e caiu nos pênaltis contra o Lanús na decisão pelo acesso na de 1989-90. Foi a última partida do ídolo, que ainda esticou as chuteiras por mais um ano nos salões dos EUA pelo Wichita Wings. Nos últimos anos, tinha no clube de sempre um abrigo como técnico dos juvenis, mas via a saúde fragilizar-se – sujeitou-se em 2018 a um transplante de fígado e rim.

Em 2020, o Quilmes mal comemorou seus 133 anos: o aniversário oficial, em 27 de novembro, deu-se apenas dois dias da perda de Maradona. O ídolo nacional foi homenageado solenemente com uma cerimônia de luz e sombras no estádio José Luis Meiszner. Com seu número 10 iluminado precisamente na arquibancada que leva o nome de Omar Hugo Gómez, evidentemente escalado pelo Futebol Portenho para o time dos sonhos do clube, alinhado naquela data. Ontem, foi a vez da homenagem ser destinada a El Indio. Ou simplesmente El Ind10, no sensível trocadilho emocionado de quem lhe deve três estrelas.

Imagens retiradas do perfil oficial do Quilmes no twitter e do excelente acervo da arroba Formaciones de Quilmes. Para mais detalhes, o site Pasión Cervecera também tem rico material sobre o ídolo máximo da instituição.

Quilmes que perdeu nos pênaltis o acesso à elite em 1990, temporada final do ídolo: Carlos Karabín, Alfredo Grelak, Jorge Gáspari (outro campeão em 1978), Alberto Rodríguez, Emilio Kalujerovich e o goleiro Carlos Castagneto; Jorge Di Gregorio, Abel Blasón, Omar Gómez, Marcelo Rufini e Luis Ernesto Sosa (semiagachado)

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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