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Tarantini, um jogador 100% de seleção que nela equilibrou Boca e River

 

Nota originalmente publicada em 03-12-2015, nos 60 anos de Tarantini

Já houve campeão mundial sem pertencer a clube algum: o lateral-esquerdo Alberto CésarTarantini, que hoje chega aos 65 anos. Assim, ele pertencia somente à seleção argentina. El Conejo (“O Coelho”, apelido adquirido ainda na base por um tique em fungar o nariz) não era refinado, mas tem estatísticas únicas. Um dos pouquíssimos de bom desempenho reconhecido tanto por Boca como por River, é de certa forma quem mais representou na Albiceleste a maior rivalidade do país, e de forma muito equilibrada: oficialmente foram 22 jogos pela Argentina como atleta xeneize e 23 como millonario (além de outros 16 e 11, respectivamente, dentre os jogos não-oficiais, contra clubes ou combinados). Foi também um dos primeiros argentinos na liga inglesa.

Tarantini veio de família humilde (precisou vender leite e jornais na infância assim como engraxar sapatos, e, dois seis irmãos, perdeu dois ainda bebês e outro ainda na pré-adolescência) fanática pelo Boca: seu pai foi um policial que chegou a ficar trinta dias detido por não ter resistido a uma emoção de torcedor; estava trabalhando na Bombonera no histórico Superclásico de 1962 em que o Boca praticamente garantiu diante do grande rival o título, com direito a pênalti defendido (contra o brasileiro Delém) nos últimos minutos. O clube encerrava oito anos de jejum da melhor forma e nesse momento o pai teria arremessado o quepe ao alto, uma infração na polícia.

Natural que o filho viesse a tentar aos 12 anos a sorte nas categorias de base boquenses; antes, chegara a ser recusado nas do Vélez. Tentou ser volante, mas a concorrência com o classudo Marcelo Trobbiani (campeão na Copa de 1986, já veterano, dando de calcanhar seu único toque na bola em Copas do Mundo) o fez recuar para a lateral ainda na base. Chegou o ano de 1973 e o então técnico do Boca, o ex-goleiro flamenguista Rogelio Domínguez, não se inibiu em descartar o maior lateral-esquerdo da história do clube, Silvio Marzolini, até então o homem que mais jogos havia feito pelo Boca – jogava lá desde 1960 e foi eleito o melhor de sua posição na Copa do Mundo de 1966. O Boca de Domínguez seria reconhecido pelo bom futebol, mas também pela imaturidade, falhando em levantar taças ao longo dos três anos de estadia do treinador que mais tempo e partidas durou no clube dentre os não-campeões.

Seria só em 1976 que o Boca enfim encerraria o relativo jejum, pendente desde 1970. Mas se Tarantini não tinha a mesma técnica de Marzolini, não deixou a torcida ter maiores saudades do ídolo: já em 1974 estreava na seleção (em um 4-1 em jogo-treino em 27 de março contra o clube Colegiales, com a estreia “oficial” vindo ainda em 22 de abril, em 2-1 sobre a Romênia), a tempo de se decepcionar por não ir à Copa do Mundo. E em 1975 chegou a jogar por um combinado sul-americano contra o Peru e a ganhar torneio juvenil pela seleção em Toulon, na França.

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No Boca, quando conciliava clube e serviço militar; campeão no River em 1981; e pelo Talleres, com o qual também foi aproveitado na seleção

Foi em 1975 também que, segundo ele, sua carreira mudou. O pai, que tinha problemas cardíacos (o que não o impedira de chegar a firmar um termo de responsabilidade para sair provisoriamente de uma internação hospitalar para assistir o primeiro Boca x River do Conejo), enfartou justamente no dia seguinte ao regresso desde Toulon. E Tarantini teria se decepcionado com postura insensível do histórico presidente boquense Alberto Jacinto Armando (quem batiza oficialmente La Bombonera) a não ajuda-lo para pagar o velório. O lateral rasgou o contrato em branco que tinha, mas seguiu por mais dois anos no Boca – ainda que, para tornar mais impessoal possível o trato com Armando, viesse a se tornar um dos primeiros jogadores argentinos representados por um empresário, o mesmo Guillermo Cóppola celebrizado por agenciar Maradona. Nesse intervalo, o time foi campeão dobrado em 1976, tanto do Torneio Metropolitano como do Nacional, encerrando jejum de seis anos na Argentina – com o Nacional sendo inclusive a única final entre Boca & River que o mundo viu até o ano de 2018.

Na sequência, em 1977, veio a primeira Libertadores vencida pelo clube, sobre o então campeão. Tarantini até confessaria na chegada à final que “estávamos todos cagados de medo, é a verdade, mas a ação da torcida do Boca foi impressionante. O Cruzeiro era um timaço, mas o Boca tinha uma personalidade tremenda, não tinha problemas em jogar em qualquer campo, nos entendíamos de memória”. Mas, apesar dos troféus enfim se tornando uma rotina, o lateral já não suportou mais jogar sem contrato e pediu para sair. Sua última partida no Boca foi em 27 de novembro, no Torneio Nacional, contra o Rosario Central. A reação de Armando foi um acordo de cavalheiros com presidentes dos demais clubes para não contratar o Conejo, visando tira-lo da Copa de 1978. Mesmo que Tarantini destacasse tê-lo ajudado contra um princípio de enfarto na emoção continental, ao afrouxar-lhe a gravata ao notar um mal estar do dirigente em plenos vestiários do estádio Centenário, palco da terceira final.

Assim, Tarantini foi registrado oficialmente como jogador da AFA, algo inédito. Ele, por sinal, nasceu na cidade-sede da associação, Ezeiza. “Killer, Gallego e Valencia saíam dos treinos e vinham comer na minha casa, porque minha mãe cozinhava muito bem. Na primeira vez os convidei, depois eles se convidavam”, relembrou com bom humor nesta entrevista de onde tiramos a maior parte das aspas dessa nota. Menotti foi bastante criticado na época por insistir com um jogador sem clube. Tarantini só não foi mais prejudicado porque os convocados ao mundial se despediram de seus clubes no início de 1978 para passarem quase todo o primeiro semestre concentrados – o último jogo do ponta Daniel Bertoni no Independiente (e no futebol nacional), por exemplo, foi a dramática final com o Talleres pelo nacional de 1977, realizada já em janeiro de 1978.

No mundial, El Conejo teve seu grande momento ao marcar de cabeça o 2-0 sobre o Peru ainda no fim do primeiro tempo, reenergizando os colegas para a construção da goleada necessária para a final: “eu sempre ficava no fundo porque era dos mais rápidos para cobrir meus companheiros, não ia cabecear, mas nessa noite tive um impulso. Estava no meio-campo, fui caminhando, vi que que Muñante não me seguia, me fiz de sonso, fui, fui, o cruzamento caiu na medida, Luque tapou Quiroga e assim chegamos ao 2-0 no fim do primeiro tempo. Foi um alívio meter o segundo aí, se não se complicaria”. Na comemoração, gritou contra a tribuna onde estava a junta militar. Mas o gesto foi mais pessoal que político: “eu os xingava porque tive que fazer o serviço militar apesar de ser o único sustento de mãe viúva. Ocorre que o Armando era íntimo dos milicos (…) e tive que fazer o serviço porque o Armando buscou tudo para que eu fizesse. (…) Videla tinha uma cara de filho da puta tremenda, mas dos desaparecidos eu não sabia nada, essa é a verdade”. Quando ia ser cumprimento pelo ditador Videla, não escondeu dele que segurou os próprios testículos antes de estender-lhe a mão – não por rebeldia antirregime e sim para vencer uma aposta de mil dólares com Passarella…

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O cabeceio contra o Peru (ele é o argentino mais à direita) e ensanguentado contra Neeskens na final – os holandeses tinham um timaço, mas não eram nada santos sem a bola

Não foi tão bem na final, embora simbolizasse a raça daquela seleção ao jogar empapado de sangue extraído de uma cotovelada aplicada por Johan Neeskens nos seus dentes. Também virou um dos ícones do título pelo “abraço da alma” com Ubaldo Fillol e um torcedor sem braços (que se juntou a eles pois era torcedor do Boca e Tarantini era o único de certa forma ainda relacionado ao clube entre os campeões), em momento eternizado em fotografia premiadíssima – veja o vídeo ao fim. Eleito para o time da Copa, mas sem nenhum cartola disposto a romper o pacto com o presidente boquense Armando, foi especulado no estrelado Cosmos e no Real Zaragoza. E quase foi ao Barcelona, fazendo testes e posando com o uniforme no Camp Nou. Porém, esbarrou na limitação a dois estrangeiros vigente em época pré-Lei Bosman e pré-passaporte comunitário europeu, de nada adiantando sua ascendência italiana. As vagas não-espanholas eram cativas justamente de Neeskens e do austríaco Hans Krankl.

O argentino foi pressionado para se casar com uma espanhola e assim adquirir a cidadania local, mas, já comprometido, negou. Assim, embarcou à Inglaterra junto com outros dois campeões de 1978, nas primeiras transferências em série de argentinos a um mercado então incomum. O futebol inglês era um tanto fechado para além das ilhas britânicas, e de fato houve polêmica com o sindicato de jogadores local, que tentou um boicote. Tarantini, por 400 mil dólares, foi negociado com o Birmingham City, enquanto o volante Osvaldo Ardiles e o armador Ricardo Villa foram comprados pelo Tottenham Hotspur. Até quem ainda não integrava a seleção pegou embalo: Alejandro Sabella rumou ao Sheffield United e Claudio Marangoni, ao Sunderland.

Só a dupla do Tottenham, contudo, realmente vingou, e mesmo assim não de imediato. O lateral, sem sucesso instantâneo, chegou a ser até processado por agressão a adversário. E foi outro processo que o fez voltar: o pai de sua enteada acionara a justiça para recuperar a guarda da filha, que havia ido à Inglaterra com a mãe, esposa do jogador. Ele regressou à Argentina para o grande time do Talleres na época, manobra para não ir diretamente ao River, onde prometera ir à Alberto Armando; o novo clube, ainda não afiliado à AFA, não havia assinado o pacto com o presidente auriazul. Também havia contexto esportivo: Menotti não costumava usar na seleção quem jogasse no exterior, tendo a liga cordobesa mais visibilidade que a inglesa para o radar da seleção. E especialmente seu clube dominante: La T só tivera menos representantes que o River na seleção de 1978, à qual cedeu o zagueirão Luis Galván e o polivalente Miguel Oviedo, enquanto o meia José Daniel Valencia pegou no meio-campo uma das vagas que poderiam ter sido de um confesso fã seu, um tal Maradona. Dieguito esteve entre os três últimos cortados, acompanhado na triste notícia junto com outro tallarin, o atacante Humberto Bravo.

El Conejo estreou ainda em 27 de abril de 1979 pelo Talleres, em amistoso contra a seleção búlgara. E já em 22 de maio fazia sua primeira aparição pela Argentina desde a Copa, em amistoso que serviu de revanche à Holanda. Seriam quatro jogos oficiais pela Albiceleste como jogador tallarin, além de um não-oficial contra o poderoso Cosmos no Giants Stadium. Esteve no sexto título seguido daquele timaço na liga cordobesa (até hoje, outros clubes foram no máximo tetra) e na subsequente campanha elogiada no Torneio Nacional: na primeira fase, o time foi líder em seu grupo, à frente do River – que, ironicamente, terminaria campeão sobre o clube que eliminaria La T nos mata-matas, o Unión. Em 1980, Armando então deixou a presidência do Boca e o defensor teve sinal verde para virar a casaca.

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Consolando o expulso Maradona contra o Brasil em 1982 – seria o último jogo de Tarantini pela Argentina. Reencontrando Diego em um Napoli x Toulouse e quase no Barcelona

O início em Núñez foi fabuloso. O River caiu cedo na Libertadores mas sobrou no Metropolitano, faturado com nove pontos de vantagem (na época, a vitória só valia dois) sobre o Argentinos Jrs de Maradona. A taça veio a quatro rodadas do fim e os campeões se deram ao luxo de darem voltas olímpicas antes de cada um dos jogos restantes. A campanha ainda teve direito a um 5-2 sobre o Boca em plena Bombonera, placar mais elástico que o Millo arrancou em Superclásicos na casa rival. Foi seu primeiro dérbi pelo outro lado e o folclórico, mas vencedor treinador Ángel Labruna resolveu testar-lhe a coragem, anunciando que não o colocaria para ver sua reação – aprovando a resposta do zagueiro de que se não jogasse, não se dignaria a ir à concentração. “Foi bravo esse jogo, o que me xingou a torcida do Boca foi terrível. Me inventaram todos os cânticos possíveis, cada vez que tocava a bola me vaiavam e insultavam. Deve ter sido o único clássico que não lhes importou perder, só lhes interessava insultar-me”.

Já em 1981, houve decadência, ao menos clubística. A eliminação na Libertadores foi muito mais precoce, o clube terminou boicotado pela própria torcida e um Monumental às moscas testemunhava um elenco que, mesmo reforçado por Mario Kempes (em reação à ida de Maradona ao Boca), não engrenava no Torneio Metropolitano. Labruna foi demitido e o futebol sob o sucessor Alfredo Di Stéfano (que transformou Tarantini de lateral em zagueiro) foi irregular, apesar de conquistar o Nacional. Na época, o peso deixou de ser pareado com o dólar e se desvalorizou muitíssimo. O River não escapou da crise e teve de se desfazer de medalhões após a Copa de 1982: Mario Kempes, cujo empréstimo junto ao Valencia era na moeda ianque, voltou à Espanha. Ramón Díaz foi vendido ao Napoli e Daniel Passarella, à Fiorentina. A Copa, em meio à Guerra das Malvinas, foi complicada. Ele relembrou que “saímos da Argentina ganhando a guerra, havíamos afundado 200 navios e quando chegamos à Espanha e vimos que todos os garotos morriam de fome e frio, que seus fuzis não disparavam, foi um golpe duro de verdade”.

Tarantini também não ajudou muito: causou escândalo ao reclamar publicamente de nova concentração larga de Menotti e questionou a suposta lentidão de Passarella. Quem levou a pior foi El Conejo, considerado pela France Football um dos jogadores que pior corresponderam às expectativas. Mas seria justamente ao futebol francês que partiria, passando uma temporada no Bastia (classificando a Córsega como um velho oeste mais selvagem) e dali a ao Toulouse. Ali, chegou a eliminar na Copa da UEFA o Napoli de um Maradona recém-campeão do mundo, no início da gloriosa temporada napolitana de 1986-87. Vivia boa fase, mas, bastante identificado com o ciclo de César Menotti, nunca convenceu Carlos Bilardo por novas chances na seleção; seu último jogo pela Albiceleste foi mesmo a derrota para o Brasil na Copa de 1982, classificado pelo defensor como o momento mais triste da carreira. Cujo fim foi atribulado.

Com agitada vida noturna, não conseguiu esconder uso de drogas (estaria limpo desde 2003) e, levando a pior no Toulouse em entrevero como treinador Jacques Santini, parou em 1989 em equipe semi-amadora do St. Gallen, na Suíça. Nunca recebeu ofertas para trabalhar em clubes, amargura que não disfarçou naquela entrevista. Mas pôde sustentar-se em escolinhas nos Estados Unidos, onde o irmão mais velho exilou-se ainda nos anos 70. Aquela entrevista foi encerrada com essa declaração: “estive doente, a verdade é que estive doente. Essa é a realidade. E me curei”. Em 2016, ele foi eleito oficialmente para o time dos sonhos da seleção. E, em 2017, para outra versão desse time, mas escalada por Diego Armando Maradona. E dos seletos doze jogadores que serviram a Argentina vindos tanto de Boca como do River, nenhum outro conseguiu número tão expressivo de partidas representando ambos os lados.

https://twitter.com/CONMEBOL/status/1334475885022474240

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https://twitter.com/Talleresdcba/status/1334512424410636292

https://twitter.com/MuseoRiver/status/1334499104521654275

https://twitter.com/TFCDatabase/status/1334393681747513346

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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